domingo, julho 31, 2005

Coisas estranhas que acontecem no Verão quando regressamos da praia, 2

A criança pegou na ameixa, rodou-a com os dedos, continuou a olhá-la cuidadosamente. O fruto tinha acabado de ser colhido da árvore. Perguntei-lhe o que se passava. É que estava à procura do papelinho autocolante do selo.

sábado, julho 30, 2005

Só o desenho















pintura de helena barracosa


Recordas: de nenhuma ave
ficava a memória
do voo nas paredes de cal. Por serem vagarosas
as tardes de junho? Porque nas raízes das amendoeiras

um único nome (e não esse)
subia com a seiva aos mais altos
e inumeráveis ramos do ano?
Sei que a luz

quase começava a desprender-se do ar
se as crianças
corriam desamparadas

nos alcatruzes da nora. Gritando com as mãos em búzio
contra as marés avassaladoras.

Na água ficava só o desenho dos seus nomes.

sexta-feira, julho 29, 2005

As férias

As férias iniciam-se apenas no primeiro dia de férias. Mas a modorra começa antecipadamente a tocar-nos. Quando finalmente estamos de férias compreendemos que a lassidão tem efeitos retroactivos.

Falam os velhos

Sim. Mas isso foi no tempo em que o Verão era no Verão.

A Ria, 5















agostinho gomes

com a maré vaza o azul das águas da Ria é também o azul do céu que é também o azul das águas do mar que é também o azul das águas da Ria

quarta-feira, julho 27, 2005

Fenda















jcb

Entre o que te digo
e o que tu ouves
ergue-se um muro
de silêncio.

Estamos sozinhos no mundo

Chove. Ficamos desorientados. Já não sabemos o que fazer. E ainda há quem fale mal dos centros comerciais.

A Ria, 4
















jcb

O mar tem faltado nestas páginas.
Não perde pela demora, claro. Mas o Verão
não é necessariamente a estação
de quem vive tão perto do mar.

O Inverno. O levante. O vento encapelando as águas.
As tardes em que a salsugem parece trazer de longe
duas sílabas dos poemas de Ibne Darrague
perdidas nas margens
da Ria.

Aí, é mais que certo, se há-de
regressar um destes dias.
Separando as águas: dum lado o Verão:
do outro
a memória do tempo
de um mar que se transforma
em leve agitação,
em nuvem ou sombra,
em lume,
em vagarosa maré.

terça-feira, julho 26, 2005

Nenhum nome















jcb

Em tempo de escassez
a água
pode ser
assim:
um nome
a que demoramos
a dar
um nome
com medo
que o milagre
possa quebrar os fios
da tarde,
o verde das primeiras folhas do mundo,
o lume
tão demorado
do
ar.

segunda-feira, julho 25, 2005

Limites

Entre o que vês
e as palavras que definem o que vês

todos estes lugares
são já um outro lugar.

sábado, julho 23, 2005

Coisas estranhas que acontecem no Verão quando regressamos da praia

Não estava a perceber. Então a criança obrigou-me a segui-la, parou na zona da eira, apontou a extremidade de um dos ramos da amendoeira e disse: «é esta. Como é que se chama uma árvore que dá parafusos?».

















jcb

sexta-feira, julho 22, 2005

Um espelho verdadeiro


















jcb

quinta-feira, julho 21, 2005

A Ria, 3

A maré deixa a descoberto
na vaza
uma luz que já nem reconheces
quando regressas de longe
a caminho
de casa.

A Ria, 2

Nenhumas frases
desviavam dos livros de poemas
a passagem
das aves.

Segredo















jcb

quarta-feira, julho 20, 2005

A Ria

Sei que a lua não tem luz própria. Que é a luz do sol,
embora sendo noite, que a ilumina. E que,
portanto, é o sol que neste momento se espalha
sobre as águas da Ria.

E no entanto penso que tudo isto deve ter
uma outra explicação. Que eu é
que não estou à altura do milagre,
da revelação.

Um Verão assim, 8

Nem Inverno
nem Verão.
Os teus olhos
são
a única
estação.

segunda-feira, julho 18, 2005

Um Verão assim, 7

Talvez ninguém estivesse assim à espera do vento.
Embora ele seja frequente por estas paragens. Ao começo
da tarde corre tantas vezes uma aragem
a encapelar ligeiramente as águas. Mas eu falo do vento.
Como se tivesse chegado o Inverno. Ninguém o esperava.

Menos as crianças. Que correram logo pela praia
com os seus papagaios de papel. Coloridos.
A repor a verdade de um Verão
que não pode deixar de o ser
só porque se levantou o vento.

sábado, julho 16, 2005

Um Verão assim, 6

Vinham então
as aves
ainda demoradas de ter um refúgio.
E tiravam pelas sebes
os rumos.
A caminho do Verão.

sexta-feira, julho 15, 2005

Um Verão assim, 5















jcb

Quero as suas páginas em branco
como se o mundo pudesse
começar de novo.
Quero essa luzerna da tarde a pique sobre os meus olhos.
Quero a sede
dos seus rumores
antes dos caminhos que levam aos tanques
com água.
Quero os primeiros gomos
dos primeiros frutos
ainda por nascer.
Quero essa vertigem de ser
tão jovem a claridade
e poisar-me
nas mãos.

Um Verão assim, 4

São poucos os nomes que resistem ao Inverno.
Por isso se diz que o Verão começa no Inverno.
Porque não merece a luz desenhada nas águas
quem ficou de bruços corroído pela sombra
deitado nos ferros dos guindastes
com a erva da tristeza a crescer-lhe nas unhas.

São poucos os nomes que resistem à sombra.
Por isso se diz que a luz começa na sombra
que mais tarde a ilumina.
Porque não merece o Verão desenhado nos pátios
quem fica pendurado pelas vísceras
à trave de lódão
onde a ignomínia escreve as últimas frases.

É para os outros
o Verão.

quinta-feira, julho 14, 2005

Um Verão assim, 3

Nos meses em que a luz caminhava devagar
entre desejo e voo
as crianças sempre iluminaram a noite
com os seus archotes de silício
retirando do ar
as impurezas. O orgulho. A insídia.
Para que se voasse
de novo.
E chegasse
o Verão.

Um Verão assim, 2

Mas havia a luz. Uma luz de gume
afiado a cortar a fruta poisada na mesa.
Uma luz agarrada aos objectos da casa
e à comemoração dos seus usos.
Uma luz que vinha da água. Que vinha do poço.
Que vinha do pátio. Que vinha do pão.
Uma luz quase incandescente poisada no corpo
em seus novelos atado ao desejo.

E era isso também o Verão.

quarta-feira, julho 13, 2005

Um Verão assim

Era no tempo em que as amoras deixavam à entrada do Verão
um rastilho de sombra crescendo nas margens
de nenhum rio. Como se os venenos ardessem muito
devagar enquanto a água evaporada das presas
transformava o oxigénio numa poderosa nuvem
de silêncio. Como se procurássemos nos mapas
em vez do azul transparente do fim de tarde
só as ravinas. Como se chegássemos a casa
e afinal os caminhos tivessem mudado durante a noite
os seus rumos. E isso apenas se pressentisse
no aroma que as amoras deixavam à entrada do Verão.
E mesmo assim corrêssemos nos lancis das mais altas torres
e levássemos à boca as amoras da traição.

segunda-feira, julho 11, 2005

Coisas simples















jcb

O levante. As ameixas acabadas de colher. A água nos canais de rega. A água dos tanques. A luz de Julho nas paredes de cal. As aves, vistas da açoteia, regressando em formação ordenada, pelo fim da tarde, a caminho da península. O levante. O seu rumor que vem de longe, do Nascente. Coisas simples. Quase tudo.

O que todas procuram: cf. China, o Ubíquo

Ronaldo, a estrela do Real, veio ao Algarve. Ao jogo das estrelas. China, o Ubíquo, apresentou-lhe um manequim que vive em Frankfurt: Anne. Ronaldo, nesse mesmo fim de noite, muito já agarrado à moçoila, confessou que houve logo «uma química muito grande entre nós» (entre ele e Anne, compreenda-se; a química é uma grandiosa disciplina, não admira). Paulo China, questionado pelo Correio da Manhã, explica o seu entendimento filosófico das coisas do mundo: «Quem é que não gostava de estar com uma miúda como aquela? Até eu queria. Depois o Ronaldo conquista-as todas, é a fama e o dinheiro o que todas elas procuram».

Toma...

domingo, julho 10, 2005

Concretamente, um barco

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Concretamente, uma árvore

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árvore
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sábado, julho 09, 2005

Londres















jcb

Duas coisas me fodem a molécula: a), a ideia de que o Bush e o Blair andam mesmo a pedi-las (para usar uma expressão muito em uso aí pela blogosfera) e têm tido, portanto, o que merecem; b), a ideia de que agora se vê como a guerra do Iraque fazia todo o sentido, e que portanto o que é preciso é meia bola e força. Espanta-me sempre este pragmatismo que fico com a ideia que decorre de quem anda a dormir de botas de salto de prateleira e com indigestões. Há quem procure colocar a coisa num plano mais racional, enunciando questões, fazendo perguntas, procurando respostas num outro plano – mas andamos todos com muita pressa, pelos vistos, e um dia se compreenderá que talvez não seja a velocidade o melhor dos conselheiros. Sei lá.

sexta-feira, julho 08, 2005

Sem título















jcb

Mas é o Verão















jcb

Mas é o Verão.
E isso deve ser dito.
Contra a última sombra,
contra o rumor da tempestade,
contra a devastação.

quinta-feira, julho 07, 2005

Hoje

jcb

Afinal
não
era ainda
o Verão.
.
.
Luís: está tudo bem contigo? Diz qualquer coisa...

Uma árvore [Memórias de um outro rio]















jcb

Talvez uma árvore
(pelo menos
assim
às vezes me parece)
seja um
dos melhores exemplos
do que,
mudando,
permanece.

terça-feira, julho 05, 2005

Antes do Verão

























































jcb

O Verão é também o tempo que esperámos pela chegada do Verão: o vento, as primeiras folhas das figueiras, a poda dos pessegueiros jovens, a flor branca e cor de rosa das amendoeiras, os botões florais dos damascos, as romãs começando ainda a desenhar os seus frutos, a sombra inclinada nas paredes dos tanques. Só depois o Verão, a sua luz que vem de longe, desde o Inverno.

Todo o amor [fragmento]















jcb

O pouco que me dás é sempre tanto
o tanto que me dás é sempre pouco.

segunda-feira, julho 04, 2005

A infância

Trocar um agrafador por um disco voador de plástico. Eram coisas assim, a infância.

A praia: no Inverno















jcb

Dois anos depois















jcb

Um Pouco Mais de Sul: João Filipe Marques escrevia o seu primeiro texto no dia 3 de Julho de 2003; eu publicava no dia seguinte. Nos últimos meses a casa ficou entregue (muito bem entregue) a Eurico Alves. É ele que está de parabéns, claro. Dois anos depois.

Munch (1863-1944) revisitado no Olsen
























Edvard Munch - Self Portrait: Between Clock and Bed. Munch Museum, Oslo.


Nada separa o Auto-Retrato Depois da
Gripe (c. 1919) e o Auto-Retrato Entre o
Relógio e a Cama, iniciado em 1940 e
concluído em 1942, em três anos sucessivos
de abandonos e regressos, talvez já não
molhando a tela com água da torneira e
expondo-a aos elementos físicos, e depois
raspando, pintando de novo, voltando a raspar.
E nada separa estes dois quadros do
terror quase melancólico de um outro
óleo de 1881, A Velha Igreja de Aker, com as
casas fechadas e a mesma impossibilidade de
encontro e diálogo marcada pelo ocre das
empenas e por um céu iluminado pela
sua própria sombra. Em Abril de 1998, à
mesa do Olsen, o engenheiro do Instituto de
Hidráulica de Copenhaga recupera da infância o
som das botas dos nazis pisando as ervas
do quintal de casa dos seus pais, onde
Munch, por esse tempo, passara um fim de
semana regressando de Asgardstrand,
e afirma que O Grito (1893, têmpera
e pastel sobre madeira) é já o retrato
do século XX. E que todos estes quadros são
o mesmo quadro. E que Munch haveria
necessariamente de morrer numa Noruega
ocupada pelo ódio, retirado na sua
quinta de Ekely, para que a Arte fosse,
acima da técnica e do estilo, uma ciência
semelhante à História, mas que relata os
factos de um futuro que por
antecipação é possível apreender
nos seus traços essenciais.

[J.C.Barros: poema publicado em Julho de 2003 no blog Um Pouco Mais de Sul]

domingo, julho 03, 2005

Século vinte

Hoje, em casa de um amigo, vi uma disquete. Oh, que curioso tropeçarmos assim em coisas antigas. Ao tempo que não via uma disquete!

sábado, julho 02, 2005

Histórias verdadeiras, 3















jcb

Daqui a uns anos talvez o poeta da máquina lírica escreva que João Gonçalves Magalhães Freire, atingido pelas setas de Cupido, morreu de amor. É assim a literatura. A má literatura. Em boa verdade, João foi atingido no coração pela seta transviada do jovem com acne que recorreu a uma cunha para se inscrever, já depois do prazo, nas classes de formação do clube de tiro com arco.

As folhas das árvores

As folhas das árvores nascem de as aves na Primavera poisarem nos seus ramos.

sexta-feira, julho 01, 2005

Histórias verdadeiras, 2

Despediram-se com lágrimas nos olhos. Como bons amigos. Só muito tarde compreenderam que ninguém se deveria despedir assim: havendo lágrimas não há justa causa. A verdadeira despedida implica o tiroteio e o insulto, os dentes cerrados, o delete nos mails, a humilhação pública (recorrendo ao boato, sim, se necessário) de quem chegámos a supor que haveríamos de amar para sempre.

Um milagre















jcb

Imagine-se que um de entre os milhares de técnicos do Ministério da Agricultura era avistado fora dos gabinetes, longe da alcatifa, dos computadores e do fax, a acompanhar uma exploração agrícola e a aconselhar procedimentos, a dar informações a quem trabalha na terra sobre os apoios à actividade, a descodificar formulários de candidatura, a enquadrar os esquemas de comercialização.

A isso, sim, verdadeiramente, poderia chamar-se «um milagre».

Encher a boca


A economia. A economia. A economia. Fala-se da economia como se a economia existisse de per si, desligada do mundo. Como se a economia não fosse o resultado do que somos nas actividades que desenvolvemos, do modo como nos organizamos na agricultura e desbaratamos ou não os subsídios em viaturas topo de gama, do modo como organizamos as estruturas de comercialização dos produtos da terra, do modo como os serviços públicos dão resposta às exigências dos cidadãos que servem ou é suposto servir, do modo como enriquecemos ou empobrecemos alegremente organizando ou destruindo o território e os recursos. Como se a economia não fosse o resultado disso tudo, da indústria que temos ou poderíamos ter, do turismo que é de qualidade ou de chinelos, do modo como nos organizamos em termos energéticos e de como nesse caminho somos mais ou menos dependentes da escalada de preços dos barris. Mas não: a economia é um excelente palavrão para continuarmos a deixar de lado o essencial e nos ficarmos pelo acessório dos clichés, enchendo a boca e colocando um ar grave, circunspecto, doutoral.

Histórias verdadeiras

Os meus amigos estão quase todos a deixar de fumar. A táctica é conhecida: primeiro começam por reduzir de vinte para quinze ou dezasseis cigarros; depois, algum tempo depois, passam para dez, onze. A partir dessa altura deixam de comprar cigarros, e fumam esporadicamente – cravando quem não começou ainda o tratamento, como é o meu caso. Hoje, por exemplo, um amigo mete-me conversa sobre o jogão do Brasil contra a Argentina, crava-me um segundo cigarro e, desavergonhado, pergunta: «e tu, como é que te andas a dar com o tabaco? Tens reduzido?». Respondi com a verdade: «Uma desgraça. Não é que esteja a fumar mais, mas só ontem comprei quatro maços.»

Eugénio, 2




















jcb


Agrada-me estar aqui, falar
de árvores, dizer delas
o que disse da neve noutra ocasião.

Da janela avista-se a torre
sobre as águas, as da infância
ou da loucura, pois não há outras

assim, tão inocentes, e tão próximas
do coração da terra – dizer delas
o que noutra ocasião disse da neve.


Eugénio de Andrade, Matéria Solar. Ed. Limiar, 1ª edição, Março de 1980.