sábado, dezembro 31, 2005

Balanço

O que fica? Sombras, muros, lâmpadas
incandescentes,
uma pedra
em redor do lume?
A breve memória da água
correndo nas margens
dos valados?

O que nos pertence
não se resume.

sexta-feira, dezembro 30, 2005

Debaixo duma árvore

para a Tuxa



jcb

quarta-feira, dezembro 28, 2005

Depois da chuva: memória descritiva, 2

Uma nuvem de cinza, espessa, começou a erguer-se
na direcção da serra. Até que o azul
das águas da Ria, deixando a península,
atravessando os campos ainda molhados,
se foi erguendo até à quase
absoluta transparência. Visto

contra o dédalo de ramos da figueira, nus,
o céu parece simultaneamente
próximo e distante, volátil
e apaziguador. A noi

tece.

E a noite espalha nas paredes de casa
a sua luz velada, efémera,
numa lenta transfiguração das coisas todas
da terra e do mar.

terça-feira, dezembro 27, 2005

Depois da chuva: memória descritiva, 1



jcb

Da casa [3ª e última parte]

E no entanto
ás veces as mulleres riscaban os alicerces
dispondo as canecas na mesa.
E se afastaban as mans por un instante do fogo
a humidade entraba nas divisorias
dos cuartos.
E sabían que se adormecesen
ou movesen os ramos da oliveira
un relampo cortaría en metades
os meses.
E por iso se estendían de memoria no arame das viñas
até que o rumor dos bosques iluminados polas aves
batese nas paredes da casa e amañecese.

E no entanto
ás vezes as mulheres enchían os cántaros
co lume evaporado das presas.
E os nenos calaban á entrada dos astros
a ollar a nube de silencio
pousada nos tanques.
E entón adormecían como se a sombra non tivese peso
e as candeas trouxesen ao patio
a pausada respiración da herba seca.

E no entanto
ás veces as mulleres saían durante a noite
e recollían nos lenzos
as primeiras sementes
aladas
do pradairo.
E ataban aos fíos de lá humedecidos nas puntas
as súas vagarosas hélices
puxando delas para o centro das mechas
acesas.
E só entón o rumor dos bosques iluminados polas aves
batía nas paredes da casa
e amañecía.



Poema de José Carlos Barros.
Tradução para galego: Tiago Vidal Figueiroa e Leopoldo Lagos Nunes.

segunda-feira, dezembro 26, 2005

O Cinema





jcb

domingo, dezembro 25, 2005

Escolhas


jcb

Dá laranjas pela primeira vez. Três frutos iluminados na tarde de chuva contra o medo do Inverno. É uma pobre árvore de Natal. Mas é esta que escolho de entre todas as outras.

sexta-feira, dezembro 23, 2005

Da casa [2ª parte]

Mais nese tempo os homes avanzaban contra a desorde.
E abrían fendas na encosta. E despois
desfacían as pedras. E despois traían ese
pó case roubado ao fogo
a fin de xuntar ao escaso aluvión
as luces acesas de marzo. E despois entraban nas minas
e bombeaban a agua do subsolo
e saían de novo a camiño das agras.
E só despois lanzaban as sementes á terra.

E no domingo rezaban como se a litoloxía os ouvise.

Mais nese tempo os homes respiraban polos xuncos
dos paúis en canto estendían os drenos.
E aplanaban o granito das plataformas
atando á nuca
as máscaras de caolín.
E medían as curvas de nivel aspirando a agua.
E deixaban no val os pulmóns submersos.
E traían despois as pedras das terrazas
e erguían represas
onde a enchente
habería de subir
até o límite
da casa.

E adormecían no pesadelo de imaxinar os panos dos liñares
a taparlles o rostro
cando xa non houbese máis nada.

Mais nese tempo os homes crían
que os ferros se dobran sostendo a respiración.
E acendíanse fornallas
receaban a repercusión dos desastres.
E non sopraban as canas nin erguían pilares
de ladrillo xunto ao fogo refractario.
E desviábanse da lava incandescente
e da diástole dos foles.
E só de noite ousaban baixar aos algares
e bater nunha forxa
cos pulsos.

E só entón a casa e a claridade e un fío de agua.



Poema de José Carlos Barros.
Tradução para galego: Tiago Vidal Figueiroa e Leopoldo Lagos Nunes.

quinta-feira, dezembro 22, 2005

Da casa [1ª parte]

Nunca soubemos se é posíbel que no seu voo por un instante
as aves cambien a traxectoria,
se lles é posíbel a escolla,
se necesariamente repiten ano tras ano
ese percurso que as trae de lonxe ao fondo do val,
se un relampo as fende ou ilumina,
se están suxeitas á propagación migratoria das frases,
se o vento do atlántico puxa delas
para o centro dos meteoros.

Nunca soubemos en que marxe se levantan os caules
onde os cardumes adormecían
antes das explosións,
se as mareas alteran a corrente dos lagos da península
ou apenas irrompen no abismo das aguas
e expanden as placas até a desorde
das páxinas numeradas dos libros,
se os peixes do fondo disipan nas vertentes cóncavas
o metal incandescente dos procesos erosivos,
se as arxilas do diluvio
precipitan aínda nos leitos de chea,
se a sede é un dos designios da abundancia.

Nunca soubemos se a poderosa evocación do paraíso
nos liga ás raíces das maceiras
ou se é apenas a memoria dos froitos
o que se expande nas arterias
até a deflagración do desexo.

Nunca soubemos se o corazón e os incendios
son pronomes posesivos inscritos na paisaxe,
se o fogo irrompe dos alicerces da casa,
se a infancia deixa na pel
as manchas a sepia das constelacións,
se o movemento de translación da terra aquece a agua
das vasillas de zinc
que as mulleres deixan ao lume,
se é posíbel que os nenos regresen do pasado
cos seus fachos de sarabia
e incendiar as planicies.

Nunca soubemos,
sabemos sempre tan pouco do que se refire
ao amor.



Poema de José Carlos Barros.
Tradução para galego: Tiago Vidal Figueiroa e Leopoldo Lagos Nunes.

segunda-feira, dezembro 19, 2005

Quase o Inverno

O frio parece reconduzir-nos ao que é essencial: à nervura, à raiz, ao desenho do tronco da amendoeira. Como se nos aproximasse das pequenas coisas, dos pequenos sinais, das evidências.

domingo, dezembro 18, 2005

A Intacta Ferida

para Calamity Spot


que uma ferida intacta se desenhe nos meus olhos
quando a luz da manhã irromper desmesuradamente
entre o deserto e o silêncio.

que uma ferida intacta se desenhe no meu rosto
quando a febre desmoronar as vertentes
iluminadas de novembro.

que uma ferida intacta se desenhe na minha pele
quando a água e a vertigem do esquecimento se misturarem
no vidro esmagado
com os pés descalços.

que uma ferida intacta se desenhe na minha cabeça inânime
enquanto uma nuvem de fósforo se espalha vagarosamente
entre as artérias e as palavras que já não sei escrever
de memória.

sábado, dezembro 17, 2005

A Natureza

jcb

A Natureza somos nós: com o que já existe: uma estrada na cumeada, as árvores que plantamos nas margens pré-existentes, a linha da água em cujos taludes desenhamos arbustos ou um freixo e suas folhas em número ímpar.

sexta-feira, dezembro 16, 2005

A Noite

Os archotes das fábricas iluminavam a Noite
enquanto a sombra caminhava na orla dos bosques
de bétulas. O branco desses troncos antiquíssimos
era a única memória da água

nas periferias.
Há um espaço difuso em que as paredes de tijolo
e o zinco das coberturas se misturam à matéria vegetal
incombustível: não é bem a cidade e não é bem

o desastre. E só os archotes erguiam
o lume evaporado à lenta oscilação dos cilindros
dos fornos

quando a nuvem de gelo poisou nos ombros
das crianças e se chegou a temer
que nunca mais pudesse amanhecer.

quarta-feira, dezembro 14, 2005

A praia

O que muda na praia durante o ano não é apenas
o seu perfil transversal
ou longitudinal: mas sobretudo o modo como
a luz se demora nas dunas
ou corre ao longo das areias
molhadas na vazante;
mas sobretudo o modo como
se mistura na espuma por entre as vagas
alterosas do sudeste;
mas sobretudo o modo como
fica poisada à flor das águas
quando nenhuma outra linha parece separar

o mar

e o

céu.

domingo, dezembro 11, 2005

Quase chão

O marulhar das ondas, ontem, anunciava o levante. Mas não havia almareio. Adivinhava-se que o dia haveria de nascer assim, com um mar incapaz, raso, quase chão. Apenas com o vento do leste a encapelar a superfície das águas.

sábado, dezembro 10, 2005

Ainda a luz do Inverno






Miguel Martinho: águastintas, águasfortes, chine collé, pedra gravada.

Mitologias, regressos, procuras, desencontros, labirintos, pedras de água, fios de seda, margens, palavras, taludes, aluvião: a Arte de Miguel Martinho apresenta-se ao público na casa propriamente dita.

Para que o Inverno seja também esta luz, e não apenas a das laranjas iluminadas por dentro.


Casa de Cacela, Agro-Turismo. Vila Nova de Cacela. Inauguração da exposição de Miguel Martinho: 10 de Dezembro, 17.30 h.

O futuro


Miguel Martinho

O futuro é o passado do que haveremos de ser: nas suas linhas imprevisíveis, nos seus mapas desenhados na pedra mais próxima e improvável.

sexta-feira, dezembro 09, 2005

As laranjas

As laranjas não recebem a luz da lua ou das estrelas de princípios de dezembro: é como se fossem elas a iluminar a noite.

quinta-feira, dezembro 08, 2005

As últimas folhas, 2

As últimas folhas do ano deixam
na terra castanha
do mês
de dezembro
o que a luz de junho prometeu
e não cumpriu.

Não é ter medo do inverno: é essa
estranha sensação
de que esperamos ainda
e acabou
o verão.

quarta-feira, dezembro 07, 2005

As últimas folhas

jcb



Quase o Inverno. As figueiras deixam no fim da tarde as suas últimas folhas. E no entanto é como se as víssemos assim, ainda jovens, pela primeira vez.

Aparição, 1

jcb



«E uma memória antiga, pesada de augúrio, levanta-se-me no seu clamor, memória escura, anterior à vida. Assim o que relembro não tem face nem nome, é a forma oca de um limiar indistinto, pura anunciação de presença, obscuro alarme de uma aparição.»

Vergílio Ferreira, in Carta ao Futuro. Livraria Bertrand, 3ª edição, 1981.

Aparição, 2

jcb




«Ignoro ainda se o monumento se alinha entre as belas obras de arte, essas perante as quais estamos autorizados a comover-nos. Ignoro-o, porque hoje sei que o milagre pode surgir quando menos o suspeitamos: uma frase musical de um tocador ambulante, o assobio de quem passa, um talo de erva que irrompe de uma juntura de pedras, podem alvoroçar-nos como a mais pura e evidente aparição da beleza.»

Vergílio Ferreira, in Carta ao Futuro. Livraria Bertrand, 3ª edição.

sábado, dezembro 03, 2005

Uma letra

para o meu amigo Manel Guimarães, que não sei onde anda


Quando a manhã
Bater de novo
Na pedra no pátio
Na cal da parede
No adro
No átrio
Na porta de casa
E entrar

Quando acordares
Sem rosas num jarro
Sem ninguém sorrindo
A acender-te um cigarro
Sem leite
Aquecido
E um rosto
Que espreite
A entrar

Quando a manhã
Não partir
Um prato
Nem se detiver
Junto ao teu
Retrato
E o sol na varanda
Já nem de memória

Há que escrever outra história

Há que escrever outra história

quinta-feira, dezembro 01, 2005

Delft, 1675

A luz havia de quebrar na cómoda do
quarto e só depois iluminar metade
da parede, o jarro com água, os panos verdes
do armário. Não gostaria que lembrasse

nada ao percorrer com vagar e definir
os objectos mais próximos. A cor, talvez
molhada nos primeiros planos, teria
depois um único nome e um modo único

de tocar a roupa de quem entrasse por uma porta
adivinhada ao fundo. Não daria expressão
alguma a esse rosto de mulher ainda jovem,
às suas mãos, ao movimento de sentar-se.

Um mapa e uma carta ficariam esquecidos na mesa
do lado da janela. E só o rumor da manhã quase
no fim daria ao quadro, entre tanto, um
pequeno relevo de água leve de coral.

s/t

jcb