terça-feira, janeiro 31, 2006

O uso das águas

Tão longe te levaram
estes caminhos de muros caiados
começavam num mapa que depois escondeste na cómoda
desciam a encosta antes da flor da urze
entravam no pátio quando
os homens antigos se preparavam para guardar os fenos

Tão longe te levaram estes caminhos
não procuravas mais que o direito de passagem
que alguém escrevesse o teu nome nos
livros que regulam o uso
das águas de aviação

domingo, janeiro 29, 2006

Também o Verão, 2


jcb

As imagens do Verão parecem regressar com a chuva, com este céu de cinza que recorta a copa das alfarrobeiras anunciando as suas vagens cinzentas e castanhas, que faz emergir de entre a folhagem escura a luz intensa das laranjas e das tangerinas, que envolve numa estranha penumbra o branco e o cor de rosa das flores da amendoeira, que lança num voo apressado algumas das aves que regressam da península, que realça na sua nudez provisória os ramos erguidos, largos, dos damasqueiros, antes das flores e dos primeiros albricoques que começam por ser uma pequena baga misteriosa nos fins de tarde de Abril. É isto também o Verão: o frio, a chuva, a sombra onde as suas raízes se preparam para fabricar uma outra luz, uma outra água.

Também o Verão

jcb






sábado, janeiro 28, 2006

Aparição


jcb

sexta-feira, janeiro 27, 2006

A chuva e os poetas sem qualidades

destes dias cinzentos é muito costume dizer-se nos poemas que:
nos remetem para os dias imensos da
infância em redor do lume
ou para o odor do saibro que
as primeiras chuvas misturam no ar
e a memória nos devolve como num espelho iluminado

entre tanto
os poetas sem qualidades falam:
da chuva concreta
das manchas que a água desenha nos tectos de estuque
das quedas aparatosas no passeio do largo
quando os velhos saem da farmácia
com os remédios do reumático
e não se vê a merda dum táxi
num raio de quinhentos metros
em redor

há questões assim que são decisivas e tão
pouca gente o reconhece:
o que seria dos críticos do expresso
o que seria de tanto mestrado e tanto mestrando
o que seria enfim do país
se não houvesse de tempos a tempos
uma polémica onde exercitar o tiro ao alvo
como esta por exemplo dos poetas sem qualidades

terça-feira, janeiro 24, 2006

A memória do amor

A memória do amor é às vezes
uma porcelana tão fina
que parte durante a noite sem o mínimo
ruído. Mas regressa sempre.

Um dia a tempestade levanta essa poeira
em que se transformou
e todos temem tocá-la ou
aproximar-se dela
como se a vida toda
pudesse deixar de fazer sentido.

domingo, janeiro 22, 2006

O que é e o que vemos

jcb

A luz só existe, 2

jcb



A luz só existe, 1

jcb


Lugares comuns

A poesia deve ilumin/ ar. Não se trata de fazer incid/ ir uma nova luz sobre as coisas. Mas de iluminá-las por dentro. A partir de dentro. Como num quadro de Georges de la Tour, a luz só deve exist/ ir (a luz só existe) a part/ ir do momento em que, intermediada, um corpo, um objecto, uma ferramenta, a devolvem ao olh/ ar. Não se pede à poesia que nos ajude a olh/ ar, que nos ajude a compreender. Mas que, através dela, as coisas se nos revelem na sua mais imponderável clareza

como se só então o mundo estivesse preparado para verdadeira/ mente nas/ ser.

sábado, janeiro 21, 2006

O relâmpago da água

Que as parcas entradas do blog andam lúgubres, sombrias, tristes; e que para tristeza basta o Inverno.

Explico-lhe sem sucesso que nem sempre a alegria é profusa, expansiva; que nem sempre o Inverno é apenas a melancolia dum céu de cinza; que fotografar (e longamente contemplar) as árvores nuas, sem uma única folha, é já um modo de apreender a sua prometida floração; e que a felicidade pode ser isso mesmo: esta certeza de que não tardam (e que portanto já verdadeiramente nos pertencem) o azul do céu, o azul do mar, uma árvore com folhas, um fruto, a luz a desenhar o relâmpago da água na cal das paredes e dos muros.

Antes do relâmpago da água



jcb

terça-feira, janeiro 17, 2006

Todas as coisas

Dizer em voz alta o nome de todas as coisas: terra, água, árvore. Para que nos pertençam na mais afastada península, no silêncio, na sombra dos muros de pedra do Inverno. Mesmo quando chegarmos tarde a esses lugares a que jurámos não regressar.

domingo, janeiro 15, 2006

O primeiro dia do ano




Nada ter ainda um nome. Para que tudo pudesse começar: a primeira luz do mundo a erguer-se nas cumeadas; a poesia e não haver ainda palavras; a água e não haver ainda uma nuvem; a nuvem e não haver ainda o granizo; o granizo e não haver ainda a névoa a desprender-se das argilas das margens.




jcb

sábado, janeiro 14, 2006

Dos milagres, 1

Como se não existissem

Acreditavas nos milagres. Mas sabias como são raros. E que não se repetem. Como se não existissem.



Nunca

Há um momento que só a ideia de milagre pode justificar. E depois compreendes que esse momento nunca pode ter existido.



O amor

«Amo-te» - dizias. Como se pudesse ser verdade.

terça-feira, janeiro 10, 2006

Memória descritiva, 4


jcb


As figueiras: sem uma única folha, nuas, erguidas nos seus ramos cinzentos contra o azul e a luz quase inverosímil dos primeiros dias do ano: eis a mais perfeita metáfora do Inverno meridional: o azul do céu contra esta espécie de tristeza que as figueiras acolhem simultaneamente a anunciar o Verão.

Memória descritiva, 3

jcb



Um fruto. Um fruto minúsculo fora dos meses anunciados nos livros. O verde dos frutos e o cinzento do pomar. Uma espécie de aparição em tempo de monstros minúsculos desenhados a sombra nos ramos das figueiras.










sexta-feira, janeiro 06, 2006

O ano novo, 2

jcb

quarta-feira, janeiro 04, 2006

O ano novo

Uma lentidão, uma calma, uma quase indolência parece misturar-se ou acolher-se, como matéria comum, nas folhas das árvores, na neblina que a manhã faz subir do interior da terra, no azul das águas e no azul do céu. Depois da vertigem do período festivo, que alguns livros dizem ser de recolhimento e reflexão mas que, na prática, é feito sobretudo de velocidade e vertigem, é como se tudo regressasse por algum tempo ao que sempre ambicionámos: a essa lentidão que nos aproxima das coisas simples do mundo, as únicas.

terça-feira, janeiro 03, 2006

Canção

Nós éramos um
quando a madrugada
chegava tão cedo
(tão cedo chegava…)
que só o silêncio
nos sobressaltava.

Nós éramos muito
não éramos nada.

E o odor do feno
quase inebriava
se as nuvens desciam
quando respiravas
em nome das vésperas
de todas as águas.

Nós éramos tanto
não éramos nada.

E pétala a pétala
nos ramos das bétulas
um nó de mercúrio
abria e fechava
e às vezes no escuro
nos iluminava.

Nós éramos tudo
não éramos nada.

segunda-feira, janeiro 02, 2006

O mar

Que o mar de Cacela
regresse mais uma vez e sempre
a estas páginas.
Que por um instante breve
suba o estuário
ao longo das margens.

Com os seus leves
e iluminados
cavalos de sombra.

Com as suas luzes.

Com as suas águas.

O mar em Janeiro





jcb