quarta-feira, maio 31, 2006

Os prédios

A noite deixa os seus vestígios
onde mais a sombra permanece em vindo a própria
luz e o lume: nos arames e nos esticadores
da roupa pendurada nas varandas, nas espias
de corda entrelaçada que suspendem as antenas,
nas tábuas das cancelas velhas dos prédios,
nas fasquias das obras.

domingo, maio 28, 2006

A ferida do tempo

Às vezes
as primeiras palavras
regressam
com as suas armas de silício
com as suas memórias
da noite
inaugural.

E escondemo-nos.
E escondemo-nos de nós mesmos
temendo
ver abrir
a ferida
do tempo.

[A ferida do tempo]

jcb

Janela

jcb

Só as crianças

Só as crianças conhecem
a violência assim, quando sobem
às figueiras e procuram nozes,
maçãs, os frutos todos prometidos
a uma vida que demora a percorrer
os canais inúmeros do vale. Só elas
sabem como será tarde sempre, como
haverá sempre um fruto que lhes
não será dado esmagar entre
os lábios impacientes. E então correm
na direcção do vento, rasgam
os calções a subir os muros
altos, povoam veredas com sua
loucura pressentida, e adormecem.

sábado, maio 27, 2006

Os que viviam das sombras

Viviam de sombras como se
a luz a pique de
Junho os
cegasse. Como se
as imagens não se revelassem
sem a mediação de
um espelho. Como se
não existissem palavras,
uma única verdade,
uma única promessa

que não decorressem
do logro.

[Pausa]

Mais uma pausa no blog. Não é por nada: é só a ver se o tamagochi se aguenta uma semana entregue exclusivamente a si próprio…

quinta-feira, maio 18, 2006

As caixas de comentários

Chegou o levante. Com o calor e o vento, com a ondulação das águas do mar, com a agitação das águas subterrâneas. Mas, como sempre – sobretudo –, tão propício ao desvario, ao delírio, à loucura, ao almareio. E propaga-se pelas praças e pelas esplanadas, pelos estabelecimentos comerciais, pelos quartos fechados por dentro, pelas caixas de comentários dos blogs que desejariam apenas o fascínio desse rumor que nasce do interior da terra e se propaga através do ar e dos ramos minúsculos das árvores de fruto.

domingo, maio 14, 2006

Os navios de pérolas

Os navios de pérolas navegam no nácar
das águas reconvertidas em íntimo silêncio:
virados do avesso, virados para dentro
como se apenas os guiassem a geometria e a álgebra

Os navios de pérolas não erguem as velas:
navegam no nácar cortando em camadas
a obscura matéria das mais antigas águas
que revertem das mínimas fracções do éter

Não há marinheiros nos navios de pérolas:
só tu vais ao leme, só tu os conduzes:
e a noite é uma sombra transformada em lume
do amor que nem une as coisas mais efémeras

sábado, maio 13, 2006

Antes ainda da água

jcb



Antes ainda de saboreá-los – repetir em voz alta a palavra mágica que os designa: al-bri-co-ques. Antes ainda da água subterrânea, antes ainda das raizes à procura dessa água exacta que os fará crescer e chegar assim até nós, suspensos (eles e nós) de um milagre que não cessa de surpreender.

quinta-feira, maio 11, 2006

A rede

Nasceram muito antes da blogosfera. Muito antes da Internet. Muito antes da informática. Muito antes da segunda guerra mundial. Estão sentados num banco de madeira pintado de verde escuro. Na praça. É uma tarde quente, quase de Verão. Um deles fala do aumento do preço da gasolina e do escândalo que é atravessarmos a fronteira, onde se ganha mais, e pagarmos menos para encher o depósito. Não me parece particularmente criativo. Mas é como se este velho, sentado num banco da praça na tarde quase de Verão, falando assim, estivesse a editar um post. Como os verdadeiros da blogosfera: de circunstância, efémeros, voláteis.

domingo, maio 07, 2006

A luz de Maio muito cedo de manhã [5.40 a.m.]

jcb





Não procuramos
outra coisa: a ideia
de que tudo
pode começar de novo,

de que nos é dada
a possibilidade
de descobrir a linguagem,
de dar um nome

a cada uma das árvores,
de tocar a água
pela primeira vez,

de construir de novo
a casa, pedra sobre pedra,
e inventar a cal.

[O corpo na poesia do séc. XX]

jcb



Do corpo se falou tão excessi
vamente (em verso, em prosa, em recitais)
ao longo de cem anos (talvez mais)
que já nem sei o que dizer de ti

ao ver-te num sorriso deslumbrada
em movimentos breves, curvas lentas,
e só o corpo me lembrar (mais nada):
as coxas ou as mamas opulentas,

as mãos tão ágeis, claras, transparentes,
o sexo intempestivo, a pele, os ombros,
o brilho demorado dos teus dentes.

Por isso, meu amor, esta alegria
de ver-te como luz por entre escombros
não sei como dizê-la em poesia.

sexta-feira, maio 05, 2006

Há um tempo

i

há um tempo em que as raízes das árvores
parecem enlouquecer
como se as movessem
as hélices
do levante.


ii

o insustentável rumor subterrâneo
do levante:
essa tão imensa estação
que se divide
entre a vertigem
e o apaziguamento.


iii

os frutos e os pássaros
misturam
no mundo exterior
o azul quebrado
nas dunas da península
durante o Inverno.


iv

há um tempo em que as raízes das árvores
parecem enlouquecer.


v

quem haveria então
de enlouquecer primeiro
à procura da água?
se regressasses
e dissesses uma palavra,
se tirasses
de novo
pelos ombros
o teu vestido
e tocasses ao de leve,
de novo,
as minhas mãos?

quinta-feira, maio 04, 2006

[O voo, 1]

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[O voo, 2]

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[O voo, 3]

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[O voo, 4]

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Lápis de cera sobre papel; decalques sucessivos, riscando o verso com bic laranja, sobre papel.

quarta-feira, maio 03, 2006

segunda-feira, maio 01, 2006

A vida, 1

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1 de Maio - Ninho em amendoeira com três ovos de picanço.

A vida, 2

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1 de Maio - Ninho em damasqueiro com cinco ovos de milheirinha.

A vida, 3

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1 de Maio - Juvenil de milheirinha: exausto, depois do que terá sido o seu primeiro voo.