sexta-feira, agosto 31, 2007

L.

agora sabemos que às vezes é preciso morrer
para que algumas coisas fiquem vivas para sempre:

a manhã de novembro em que caiu a neve
e foste a minha casa oferecer-me agasalhos;

as tuas mãos nas minhas mãos quando
quase adoeceste por me ter assaltado a febre.

havia tantas coisas que era preciso esclarecer:
falámos ao telefone e combinámos um encontro.

mas foi preciso que morresses para compreender
que as coisas decisivas ficam sempre por dizer.

Pai

Pai:
nunca escrevi
sobre ti:

nunca
saberia
o que dizer:

nunca
a flor do junco
haveria

de juntar
a sua inúmera
flor

e o gesto
de fazer dela
o amor.

quinta-feira, agosto 30, 2007

Esse lugar

o lugar que separa
os venenos dos seus perigos
aí adormeces

segunda-feira, agosto 27, 2007

Noite

que a maré desça
quando tiras o vestido
pela cabeça

Nascente

um rio que subisse
até encontrar
o teu nome

Dos malefícios da música pimba

a baía de Cascais
passava bem
sem os Delfins

Quando chove

nos teus olhos a água
nem uma nuvem
nem uma lágrima

Três imagens

jcb


[Fala a namorada do lutador de sumo]

vales
quanto pesas
meu amor

O teu nome

o teu nome
as tuas sílabas
em tudo quanto cintila

domingo, agosto 26, 2007

A porta do quarto da entrada [pormenor]

jcb



Em vez do sono

em vez do sono
as tuas armas
brancas

Camaleão

jcb






Aparecem de vez em quando. Mas, mestres na arte do disfarce, nem sempre os distinguimos por entre os arbustos e as árvores. Este, hoje, escolheu um jacarandá. E iluminou as suas folhas recortadas.

sábado, agosto 25, 2007

Já não nos motiva

Já não nos motiva nenhuma ideologia
e não acreditar em Deus não
é propriamente uma crença.
Resta-nos pois provavelmente a Icologia

e a filosofia do Paroxismo:
talvez fundemos uma espécie de igreja
onde o que nos move não seja
tanto a Paisagem mas um Catecismo.

O mundo deveria ser como antes:
sem electricidade nem combustíveis fósseis.
Nós somos contra os automóveis
e contra os desodorizantes.

É verdade que comemos hambúrgueres
e vivemos em apartamentos nas Telheiras.
Mas se dependesse de nós só se semeavam girassóis
e só se plantavam oliveiras.

Tudo é

no silêncio
tudo é o
que se move

sexta-feira, agosto 24, 2007

Tantas vezes a única

Essa é a tua estrela
essa que chega a quase nem brilhar
essa que fica tantas vezes escondida durante a
noite pelo brilho de todas as outras estrelas
essa que não é sequer um ponto na carta de rumos

essa é a tua estrela
minúscula estrela quase apagada
tantas vezes a única
minha única estrela

quinta-feira, agosto 16, 2007

O poeta no Instituto de Medicina Legal

lamentavam muito
mas que não podiam aceitar doações
de veias poéticas

terça-feira, agosto 14, 2007

Espero mais uma vez

espero mais uma vez
entre uma cerveja e um cigarro
no caminho que leva do bosque de bétulas
ao tanque do meio da aldeia
nos caules da margem esquerda do único
e primeiro rio
na encosta da urze
na taberna com parabólica onde
passam os jogos do barcelona e do real madrid
no terreiro da festa
nas mesas da esplanada de s. vicente

espero mais uma vez
como se não houvesse nenhuma constelação
nenhum livro de poemas
nenhuma metáfora
que devolvessem à noite a revelação
dos teus
olhos nos meus
olhando-me
como se mais nada existisse no mundo
como se só então as coisas começassem a ter um nome
como se só então
o mundo pudesse começar

sábado, agosto 11, 2007

O que é o Tempo

1.
em casa dos meus avós
no inverno
adormeciam todos muito cedo
a noite chegava
quando o silêncio
poisava
as suas inamovíveis âncoras
nas mesas
nas tábuas de esquadria

hoje regressamos
(o que é o tempo)
as paredes escalavradas
a ruína
e o mesmo silêncio antigo
como se permanecesse
como se ficasse
como se nunca
se tivesse desprendido
ano após ano
dos nossos
sucessivos
gestos


2.
(a meio da tarde que
rumor é este
igual ao silêncio)


3.
descemos ao pátio
abrimos os braços
e quase
não cabemos nesse espaço
outrora amplo
onde corríamos
e jogávamos
à bola

terça-feira, agosto 07, 2007

O que trazemos

Das viagens
trazemos às vezes
fotografias iguais às dos livros
de viagens.

domingo, agosto 05, 2007

Mas é o Verão

O vento instala a desordem: nas sombrinhas, nos guardanapos de papel das esplanadas, nas toalhas coloridas estendidas no areal. Mas é o Verão: uma criança corre à beira da água com as mãos abertas e a espuma do mar agarrada aos cabelos soltos.

A Filarmónica

A aldeia ficou bem na fotografia
quando foi visitada pelo sr. Presidente.
Arrumaram a lenha quase em esquadria
e limparam as ruas meticulosamente.

Alinharam palcos com estrados de madeira
e estenderam grinaldas até ao coreto.
A Filarmónica tocou à maneira
e o cheiro a merda desapareceu por completo.

Sentimo-nos tão orgulhosos dos nossos fatos
com flores na lapela de murta e alecrim.
A aldeia ficou tão bonita nos retratos.
Quem nos dera que fosse sempre assim.

quarta-feira, agosto 01, 2007

O cinema

Via-te sacar o revólver
e tremia
mesmo sabendo
que nunca falharias
um disparo