quarta-feira, janeiro 02, 2008

O Livro para 2008

Aquilino Ribeiro, na sua versão do Quixote (ed. Bertrand Editora), ambiciona bem mais que corrigir «entorses», «insuficiências», «inexactidões» de traduções anteriores para português. Mais que ultrapassar esse «breve dano», Aquilino propõe-se corrigir a falta de respeito pelo «carácter da elocução da obra». É obra.

Não surpreenderá, assim, que o «rocín flaco» do fidalgo passe, na sua versão, a «pileca à manjedoira»: Aquilino, ao justificar a empreitada da tradução do Quixote (versão mais que tradução) não deixa de invocar a sua «equipagem de escritor»…

Na versão de Aquilino, pois, dificilmente suporíamos que poderia sobreviver uma tradução literal do famoso «de cuyo nombre no quiero acordar-me» - que passará a «o nome amanhã o direi» e que, curiosamente, a paráfrase de Saramago haverá mais tarde de recuperar na Jangada de Pedra ao falar de um lugar de Portugal «de cujo nome nos lembraremos mais tarde».

José Bento, por seu lado (ed. Relógio d’ Água), traduz «de cuyo nombre no quiero acordar-me» por «de cujo nome não me lembro». E defende-se, em rodapé, informando que «querer» é aqui um verbo auxiliar, não se justificando mantê-lo em português. Mas acrescidamente se defenderá na Nota à edição, ao explicar que pretendeu servir o original cingindo-se muito «à sua letra» – seguindo, de resto, o conselho do amigo de Cervantes inscrito no Prólogo da primeira parte: escrever «dando a entender vuestros conceptos sin intricarlos e escurecerlos». Estaria José Bento a pensar nos malefícios da assumida «equipagem de escritor» de Aquilino?…

Claro que o fascínio da abertura do Quixote vem da referência a um vago «lugar» de cujo nome o autor não quer recordar-se. E isso não permite simplificações nem contrapontos.

Além de Miguel Serras Pereira, também os Viscondes de Castilho e Azevedo são fiéis a esse «de cujo nome não quero lembrar-me»; João Bento fica-se pelo «de cujo nome não me lembro»; Aquilino, defendido com a sua «equipagem de escritor», prefere o fascinante e insinuante «o nome amanhã o direi».

Seja como for: a quem se dispuser à leitura do Quixote em português aconselharia sempre a tradução de Miguel Serras Pereira (ed. D. Quixote). Que começa assim: «Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, não há muito tempo vivia um fidalgo desses de lança no cabide, adarga antiga, rocim magro e galgo corredor.»