sexta-feira, fevereiro 29, 2008

3.

[Modernidade, num determinado tempo antigo, significava humanismo: o conceito separava da vasta barbárie a minoria dos que partilhavam os valores da vida e da dignidade e lutavam pela liberdade e os direitos do homem (palavrão, lugar-comum). A modernidade, hoje, confunde-se com a cultura de massas; hoje somos todos modernos (ou ainda menos). Compreender-se-á que a grande exigência do nosso tempo não seja outra que a de nos libertarmos desta modernidade rasca (varrendo-a) sob pena de chafurdarmos todos nela. Um dos caminhos (não o único) para desatar os nós da urdidura passa pela reinvenção da nossa relação com o meio em que nos movemos. Quem são os modernos de hoje? Imagine-se o blogger moderno (nascido, é um supor, em 1975) a ler um texto sobre um mundo que já não existe em que um lenhador deseja uma mulher e em que os amieiros e os freixos da margem do rio servem de enquadramento à cena. O blogger moderno, vindo de comprar umas calças modernas numa loja das periferias urbanas de Lisboa iguais às calças compradas pelo adolescente de Pequim ou de Manchester ou pelo cota de Baião, não apenas haverá de sorrir como, superior, sobranceiro, resistirá com dificuldade a um comentário displicente. Do género: «Ela adivinha o quanto ele a deseja… com o pescoço no cepo. Assim a carga dramatica seria muito melhor! Ah ah eh eh eh» Este seria um comentário digno, verosímil, do blogger moderno que vem de fazer um download pirata (relevem-se as dificuldades ortográficas do comentário). Acontece que o lenhador desse mundo que já não existe estava certo com o seu mundo e aprendia a evoluir dentro dos condicionalismos geográficos, temporais, culturais, em que vivia; o blogger moderno não sabe quanta da urina que mijou ontem vem no copo de água que acabou de beber, e os condicionalismos culturais e ambientais em que se move são os que ele mesmo, ululante, prescreveu. O lenhador dos anos sessenta tem um caminho a percorrer, embora sem consciência perfeita do caminho que percorreu e do caminho que lhe falta percorrer; o blogger moderno julga conhecer o chão que pisa e não intui que, não obstante encontrar-se em plena corrida e pronto para a aceleração, o mais certo é que bata com os cornos contra uma parede invisível erguida (por ele) no caminho que ele mesmo escolheu percorrer.]

quinta-feira, fevereiro 28, 2008

2.

Ela adivinha o quanto ele a deseja. Consegue sentir o seu desejo no modo como respira ou (subindo ela a escaleira) faz uma pausa na tarefa de rachar a lenha para poder olhá-la simulando olhar o horizonte. É uma tarde quente de fim de Verão. Os salgueiros e os amieiros, com as suas folhas escuras e os fustes densos, marcam o talvegue do rio. O brilho quase incandescente dos troncos muito brancos das bétulas parece inverosímil. O tojo e a urze, na encosta, não perderam ainda as flores amarelas e roxas. Os robles mais jovens erguem na umbria os troncos lisos de um cinzento ténue. Do lado de dentro da casa, defendida pela obscuridade do interior, ela olha-o através dos vidros da janela a admirar o movimento preciso do corte, os músculos distendidos erguendo o machado, a distensão depois acompanhada de um grito brevíssimo no momento preciso em que a lâmina toca a madeira. Não há uma nuvem. Esse grito e esse som da lâmina a atravessar os paus de lenha, quase simultâneos, quebram o silêncio, a espaços, repercutindo o estampido de um disparo na abóbada do vale.

quarta-feira, fevereiro 27, 2008

Capítulo IV

(Onde Aline escreve sobre memórias dispersas)

1.

Deus, a que outros chamam Natureza, formou e aplanou as montanhas, deformou os materiais que tinha sedimentado, colmatou bacias, comprimiu os relevos, juntou e separou blocos continentais, formou fossos tectónicos, afastou continentes, fez o mar avançar pela terra dentro e depois afastar-se; concebeu a chuva e o relâmpago, a neve e o fogo, o poço e a nuvem, a geada e a luz, o dia e a treva; criou os peixes e as aves, os escalos e os gaios, a truta e a calhandra; criou a raposa e o saca-rabos, o cão e a salamandra, a galinha e o lobo, a lebre e o texugo; criou os carvalhos e as faias, a aveleira e o escalheiro, a madressilva e o trovisco, a salsaparrilha e o codorno, a urze e o tojo, o azevinho e a bétula; criou finalmente o Homem para que tudo comandasse; e depois, cansado, retirou-lhe uma costela e criou a Mulher. O mais certo é que fosse já tarde; que a fadiga lhe impedisse a perfeição final. E então, dando a tarefa por terminada, coibiu-a de sentir o desejo e de experimentar o prazer.
2.

Aline olhou repetidamente as fotografias da casa. Demoradamente. Durante vários dias. E é como se uma parte da sua vida começasse a regressar de um lugar que nunca existiu, de um tempo que chegou a julgar nunca ter vivido. A tristeza e o sobressalto, a melancolia e o desassossego, aos poucos, pareciam juntar-se na memória das coisas. Não havia uma linha condutora, um fio que ligasse um acontecimento a outro, uma lógica, uma cronologia: apenas imagens isoladas emergindo de entre a poeira muita fina de camadas sucessivas de escombros, resíduos, sedimento. Aline sentou-se. Ligou o computador. Abriu um programa de texto. E começou a escrever:

segunda-feira, fevereiro 25, 2008

Capítulo III

(Onde Aline intui que é possível regressar ou perder uma casa para sempre)

1.

Talvez a evidência da precariedade do prazer tenha levado à invenção do amor. Talvez o amor seja o esforço (a ilusão, a vontade) de cimentar esse muro defensivo erguido com tijolos frágeis (Aline intui que o tédio decorre da aceitação da evidência da precariedade do prazer). Talvez o amor, a ser assim, se constitua como uma das mais belas e perfeitas e comoventes construções humanas. Porque, a ser assim, o amor decide-se no território da sua própria impossibilidade; porque, a ser assim, o amor exige a entrega, a permanente disponibilidade, a abdicação do que julgávamos pertencer-nos. Aline reflecte sobre tudo isto e conclui que merece o tédio. Nunca fez nada pela construção do amor; do mesmo modo que nunca fez nada para que a casa que lhe pertencia pudesse verdadeiramente pertencer-lhe.

domingo, fevereiro 24, 2008

7.

Não sei que mais lhe diga. (Há pouco mais a dizer: e algumas dessas coisas, por pertencerem a um reduto de intimidade, não devem dizer-se.) A tragédia, como imagina (conta o dr. João Marcos), ficou agarrada ao pai de Aline como uma doença do corpo. Menos de vinte linhas resumirão tudo o que falta dizer: Aline nasceu num domingo de Páscoa; ele, nesse dia (eu tinha regressado da cidade), procurou-me num alvoroço: mas nem assim um sorriso foi capaz de abrir o seu rosto; deixou a aldeia, claro: foi viver para uma casa que o seu avô tinha deixado à ruína (afastada do mundo: chegava-se por um caminho de pé posto) a jusante da Ponte de Arame; arroteou o pequeno vale confinante, despedregou a encosta, semeou centeio e um milho de regadio, fez uma horta, erigiu um forno, arrumou um curral. Reconstruiu a casa, vagarosamente, uma pedra e depois outra. Ergueu muros. O tempo corria sem aparente agitação ou sobressalto. A Ana Paula nunca mais se ouviu uma palavra. Aline, depois dos seis anos, foi à escola. Passava a semana na aldeia; em casa dos tios. Eu continuei a visitá-lo como se a tragédia não tivesse alterado tudo. Nunca se falou de Luísa. Nunca se falou desse dia em que ela apareceu, ninguém sabe como nem porquê, morta, à hora do casamento da irmã, coberta por um lençol de linho no chão do adro. Desculpe ter falado tanto (e tão pouco). Você perguntou-me apenas se conhecia o pai de Aline; se éramos amigos. Sei lá que lhe diga. A vida é o caralho.
6.

(Não. Não nasceu na Aldeia.)

sábado, fevereiro 23, 2008

5.

O tempo raramente cura as feridas. Mas as feridas ficam e o tempo corre. O pai de Aline (conta o dr. João Marcos) acabou por acordar o casamento com a irmã de Luísa. Ana Paula tinha uma beleza e uns modos que não ultrapassavam os limites do decoro. A aldeia não sentiu os perigos insustentáveis da lascívia ou do prazer ostensivo (Luísa desaparecera para sempre). A aldeia, aliviada, estendeu-lhe um chão de alecrim e alfazema a caminho da igreja; ergueu-lhe grinaldas e arcos de loureiro e vinha-virgem. Era um dia muito quente de meados de Maio. Sem uma nuvem. Claro, quase transparente nas mãos inclinadas contra o horizonte. O ar iluminado e leve até à iridescência. Ana Paula entrava na igreja quando se ouviu um grito. As aves ergueram-se dos ramos dos freixos do largo. A aldeia, num sobressalto, correu ao adro: uma criança destapava um lençol de linho na pedra do cruzeiro e o corpo de Luísa, como se estivesse ainda vivo, os olhos abertos e fundos, estendia-se imóvel no chão do fim da manhã de Maio como uma aparição do desassossego.

sexta-feira, fevereiro 22, 2008

4.

O sobrenatural não configurava um mundo subliminar ou uma entidade desligada do terreno chão e concreto. O sobrenatural (conta o dr. João Marcos) insinuava-se no quotidiano até não haver separação entre o prodígio ou o milagre e a realidade material. O sobrenatural estava presente nas mínimas coisas; misturava-se nelas. Ora acontece que Luísa era duma beleza trágica: porque à sua beleza se acrescentava uma sobranceria que parecia reverter do tédio e da distância. Isso fundava na comunidade um elemento de instabilidade (de desequilíbrio) inaceitável e que só poderia inscrever-se no domínio do oculto. A Luísa, portanto, se começaram a atribuir estranhos poderes; a ela se começaram a associar inusitadas ocorrências. Porque caiu a neblina sobre os campos da veiga no dia em que nasceu uma criança e aí permaneceu, numa nuvem espessa, até que morreu uma outra afogada num poço? Porque caiu um relâmpago na torre da igreja à meia-noite do dia doze de Dezembro e os dois ponteiros do relógio ficaram parados, sobrepostos, apontando ao número doze? Porque começaram a ver-se fogueiras em deriva nos montes saindo dos buracos dos canhotos furados dos torgos da urze? Porque Luísa, necessariamente, tinha estrangeirinha com o demo. O pai de Aline, claro, ria-se de tudo isto. Ele e Luísa continuavam o namoro. Eram vistos de mãos dadas. Tinham casamento marcado. E foi então que Luísa desapareceu. Sem deixar rasto. No dia em que tinha sido vista na cortinha, a manhã inteira, a recolher as giestas de que se faziam as vassouras das bruxas.

quinta-feira, fevereiro 21, 2008

3.

O pai de Aline (conta o dr. João Marcos) era pouco expansivo. Tímido. Mas de uma timidez que parecia reverter do orgulho. Havia qualquer coisa de nobre, de distintivo, de delicado, no modo como caminhava ou se sentava à mesa ou batia a pedra do isqueiro até iluminar a torcida de trapos. Por isso ficava quase sempre de fora dos jogos raros do mundo rural: os dias festivos associados aos trabalhos do campo. Por isso ficava quase sempre de fora do jogo recorrente de subentendidos e alusões relativos ao sexo. A sexualidade, a ideia de prazer, numa aldeia de montanha, nesse tempo, eram reprimidas até ao exagero. Compreende-se, pois, que estivessem sempre presentes. Mas o pai de Aline era pouco expansivo. E portanto se levou tão a sério a sua paixão sem reservas (pública) por uma mulher. Luísa. Era esse o seu nome. A tragédia, olhando os seus lábios e as suas pernas esguias, os seus olhos fundos, o seu aparente distanciamento das coisas do mundo, era como se estivesse anunciada nas folhas dos negrilhos ou nas páginas dos livros.

quarta-feira, fevereiro 20, 2008

2.

A infância passou a correr (conta o dr. João Marcos). A infância é um vórtice, um tempo sem cronologia. A infância, verdadeiramente, não existe. A infância é a memória que guardamos dela num tempo futuro. Passa sempre a correr. Passou a correr e eu saí a caminho da cidade. Saí cedo, como lhe disse. Mas tarde de mais para que fosse já possível cortarem-me por inteiro as raízes dos negrilhos que se misturam em nós. Por isso fiquei a fazer parte da terra, agarrado a ela por laços invisíveis e inverosímeis. Regressava muitas vezes. O pai de Aline procurava-me sempre. O fascínio da cidade é imenso num jovem que vive na montanha, afastado do mundo, por detrás de demoradas cumeadas que se sucedem e perdem na distância entre o cinzento e o azul ténue da melancolia. Ele queria saber do mar e das avenidas, das mulheres e dos aviões, dos barcos e da iluminação das praças e dos grandes edifícios do comércio. Sentia o apelo forte do desconhecido mundo. Veja como são as coisas: sentia esse apelo forte e teve várias oportunidades de sair; quase todos os jovens do nosso tempo acabaram por sair. Mas não. Foi ficando, ficou sempre, ficou para sempre. O mais certo é que fosse tarde: que as raízes dos negrilhos se tivessem já misturado, irrevogáveis, à sua pele e ao ar que respirava.

domingo, fevereiro 17, 2008

Capítulo II

(Onde o dr. João Marcos fala do pai de Aline e de um amor tocado pela tragédia)

1.

Claro (conta o dr. João Marcos) que o conheci. Vivemos em casas contíguas. (Não, ele não vivia com os pais. Peço desculpa, mas isso é outra história; e não vem ao caso.) Se éramos amigos? Sim. Quer dizer. A amizade é hoje um conceito volúvel; a frivolidade uma das principais características deste tempo que me foi dado ainda viver. A amizade, então, era um objecto raro. Não sei se deva dizer que a amizade nos tocava um ao outro. Conhecemo-nos, partilhámos uma infância que hoje não saberia classificar entre a ferida e a felicidade, a sombra e o iluminado êxtase. Corríamos nas encostas da urze e nas veredas que seguiam da escola a caminho do vale, pescávamos trutas palmeiras no regato do Covas, guardávamos gado, ajudávamos no campo, armávamos esparrelas aos melros. Mas eu saí cedo. A cidade. Os estudos. O meu tio queria fazer de mim um homem. Eram essas as suas palavras. O meu pai acabou por ceder. O meu tio dizia que as raízes dos negrilhos se misturavam em nós e nos agarravam à terra. Que era preciso cortar cerce essa matéria vegetal incombustível. Para que a pele e o chão da aluvião não acabassem por misturar-se e confundir-se. Mas eu regressava muitas vezes. Sempre que podia. Nos dias festivos. No Verão. Eu era o seu confidente. O pai da Aline contava-me tudo. Pedia conselhos. Partilhávamos medos, júbilos, apreensões. Sim, talvez possa dizer que éramos amigos. Mesmo considerando que a amizade era então um objecto raro, precioso, singular.

sexta-feira, fevereiro 15, 2008

9.

Aline nasceu em mil novecentos e sessenta e oito numa casa afastada do mundo a cinco quilómetros duma aldeia (de cujo nome não quer recordar-se) afastada do mundo. Pela primeira vez desde o dia distante em que saiu para não mais voltar, espalhadas numa mesa com tampo de vidro, Aline tem diante de si fotografias da casa. Numa delas, a mais antiga, poderia ser o seu rosto o que se desenha, difuso, por detrás dos vidros da janela da cozinha. Mas é como se as fotografias e a sua vida contassem histórias diferentes. Aline olha o rosto que se esconde por detrás dos vidros da janela da cozinha mas o rosto que se esconde por detrás dos vidros não poderá ser o seu rosto. As fotografias mais recentes, curiosamente, parecem-lhe mais próximas do tempo antigo da infância. São retratos do abandono, da ruína, de escombros. O abandono (o tempo) investiu contra os telhados e as paredes, a varanda e o pátio, o terraço e a escaleira de pedra, o muro de xisto e as árvores do terreiro. E é nesse retrato de escombros que mais se revê. Como se não fosse já possível regressar senão à ruína e ao abandono. Ao que não existe. Como se a ruína e o abandono, sobre todas as coisas (o prazer, o tédio, o desejo, o sobressalto), fizessem parte da sua vida.

quarta-feira, fevereiro 13, 2008

8.

Aline compreende que o tédio há muito enrolou nos seus pulsos os fios da trama. Aline compreende que há muito, na sua vida, o prazer deixou de ser alvoroço e exaltação. Mas Aline sabe (julga saber) que a vida não é possível sem a aceitação desses fios invisíveis que o destino vai tecendo à passagem das horas: entre a alba e a penumbra dos fins de tarde; entre a noite e o seu reverso imperscrutável; entre a aparição e o distanciado sépia dos retratos antigos. Talvez a procura da felicidade implique o prévio reconhecimento da inevitabilidade da tristeza e da incompletude. Talvez o prazer não seja mais que uma fogueira acesa no Inverno; uma lâmpada a iluminar por instantes breves as encostas da umbria; a pedra disparada; o comprimento entre duas ondas sucessivas. E Aline sente-se tentada a pensar que o tédio, provavelmente, delimita um território onde se erguem defesas contra a precariedade do prazer e as incertezas do mundo.

terça-feira, fevereiro 12, 2008

7.

O Poeta, um dos três namorados de Aline nos últimos anos (Manuela não conta), diria agora, chamado a terreiro: «o tédio, Aline, é inversamente proporcional ao desassossego de estar vivo; o tédio, Aline, é a demonstração de que a labareda do prazer se alimenta do seu próprio combustível; há quanto tempo, Aline, uma nuvem não é para ti senão uma nuvem, há quanto tempo não te percorre verdadeiramente a inquietação de um corpo que se deseja, há quanto tempo não choras a olhar a chuva a bater nos vidros das janelas num fim de tarde de Novembro, há quanto tempo não agitas as mãos na água de um tanque a ver a leve ondulação da corrente, há quanto tempo não adormeces com o desassossego de saber que o mundo permanece vivo por dentro dos sonhos?» Isso diria o Poeta, chamado a terreiro, caso o seu depoimento fosse relevante depois da condenação por associação criminosa num processo de roubo de automóveis de luxo. O certo é que Aline encontrou na cidade as suas defesas. Sente-se protegida pelo ruído, pelo anonimato, pelo movimento das ruas. Da varanda do apartamento vê o rio, os barcos e o rasto de prata que deixam nas águas, a outra margem, os telhados dos antigos armazéns, uma alameda com lódãos, uma estrada com automóveis correndo incessantemente a caminho de um lugar de onde um número igual de automóveis parte em sentido contrário. Mas Aline olha a fotografia da casa antiga e sente um súbito sobressalto; uma cicatriz no quotidiano; uma incursão inaceitável nas suas defesas. E parece evidente que o tédio há muito enrolou nos seus pulsos os fios da trama. E parece evidente que há muito, na sua vida, o prazer deixou de ser alvoroço e exaltação.

domingo, fevereiro 10, 2008

6.

O tédio é o contrário do sobressalto. O tédio é uma aranha de silêncio a tecer as suas teias recônditas: a urdidura e a trama. Não é possível definir o momento preciso em que esse delicado tecido, depois de cruzados todos os fios da lançadeira, se mistura na pele e a vai atravessando por osmose: até à indiferença. Aline olha a fotografia da casa e enreda-se na contradição de supor que não viveu uma parte da sua vida e de simultaneamente saber que não poderia deixar de a ter vivido. Aline recorda o desconforto, a solidão, a tempestade, o afastamento do mundo. Imagens vagas: a neve a misturar-se na lama dos caminhos, a água da chuva, muros de pedra, caminhos de terra, as árvores e os bosques. E no entanto uma funda inquietação a percorre e Aline esforça-se por trazer de longe uma imagem nítida, límpida, uma âncora, um momento em que a vida e a sensação de estar viva possam coincidir e fazer sentido: uma imagem nítida, límpida, em vez da sombra e da urdidura do tédio. E só então compreende que é possível ainda o sobressalto e que é preciso começar tudo de novo.

sexta-feira, fevereiro 08, 2008

5.

Aline tem nas mãos uma fotografia antiga da casa. Aline viveu dezasseis anos nesta casa afastada do mundo, longe do asfalto, erguida entre a linha de festo e um ligeiro talvegue. A casa é hoje uma ruína. Aline não assistiu ao modo como o telhado foi ganhando um ondulado insólito até o espigão da cumeeira ceder ao Inverno, como a hera e a vinha-virgem treparam as paredes até ocupar as juntas do perpianho e desalinhar as pedras arrumadas, como as portas e as janelas deixaram apenas o vazado dos vãos, como as grades das varandas se inclinaram e desmoronaram no pátio num amontoado de escombros. Aline, muito tempo depois, tem nas mãos uma fotografia da casa a que nunca mais regressou. Olha a fotografia. E descobre, num súbito sobressalto, que a imagem da casa e a memória que tinha da casa são completamente diferentes. Aline olha a fotografia com a estranha sensação de que nunca viveu neste lugar. Como se o tempo tivesse apagado os anos da infância e da adolescência ou como se a infância e a adolescência não tivessem feito parte da sua vida.

quarta-feira, fevereiro 06, 2008

4.

Aline também descobriu muito tarde (quase não acreditava) que havia pessoas a sonhar com a neve e que a neve era "um destino turístico". É verdade que às vezes se desejava a chegada da neve: quando o sincelo persistia dias a fio e o frio ficava entranhado nos ossos e congelava a água dos tanques e dos remansos. Mas a neve, na infância, erguia-se nos caminhos de terra e nas calçadas e misturava-se rapidamente na lama. É verdade que às vezes se desejava a chegada da neve para que a temperatura deixasse de ser insuportável quando as geadas sucessivas espetavam as suas facas de vidro nos largos e nos pátios: mas a neve atravessava o forro dos quartos soprada pelo vento. Ao descobrir que havia pessoas que sonhavam com a neve, Aline esforçou-se por imaginar o prazer de acordar e correr à janela a ver as encostas pintadas de branco. Fechou os olhos por instantes: mas só sentia o desconforto do Inverno e não via mais que a neve muito escura misturada na lama das ruas.

terça-feira, fevereiro 05, 2008

3.

A descoberta da sexualidade é mais precoce no mundo rural porque no mundo rural a sexualidade é mais reprimida. É tão reprimida que está sempre presente. A igreja ajudou ao decidir esconder a sexualidade com uma rede de fios de néon. A ilegitimidade do prazer físico colocou sobre o corpo um lençol opaco que deixou quase tudo à mostra no muito que procurou ocultar. O tema da sexualidade é recorrente no mundo rural e joga-se em permanência num universo de metáforas e alusões em que é inevitável falar do que não se pode dizer. Foder ou matar a fome não andavam longe nos seus pressupostos: libertar o corpo dos seus excessos ou da sua voracidade insustentável. Só muito mais tarde, só muitos anos depois, Aline compreendeu a diferença entre o prazer e o sexo, a pele e o corpo.

segunda-feira, fevereiro 04, 2008

2.

As ruínas da casa e dos seus anexos são hoje disputadas a preços imoderados. Os promitentes compradores antecipam o prazer de ficar à sombra dos carvalhos centenários numa tarde de Verão, de ver as crianças a jogar à bola na parte de cima do lameiro das águas sesserigas, de subir a escaleira de pedra, de acordar com o silêncio apenas cortado pelo rumor do vento nos ramos das tílias ou da água dos gralheiros do rio. A ironia é imensa: Aline nasceu nesta casa e esta casa e os seus anexos caracterizaram sempre a impossibilidade do prazer. Aline recorda o desconforto, a solidão, a tempestade, o afastamento do mundo. O que faz o tempo: os promitentes compradores privilegiam hoje a ausência de infra-estruturas, o carácter periférico, o isolamento, a distância. Uns antevêem a ideia de prazer exactamente no mesmo objecto que significou para outros o seu reverso.

domingo, fevereiro 03, 2008

Capítulo I

(Onde se apresenta Aline, se reflecte sobre o prazer e o tédio e se fala de uma casa afastada do mundo)

1.

Interrogamo-nos sobre o que é o prazer e descobrimos com surpresa que não há uma definição possível. A ideia de prazer depende de variáveis inúmeras: geográficas, temporais, sociais, culturais. Depende de quase tudo. Numa aldeia do interior, na montanha, nos anos sessenta do século vinte, o prazer poderia decorrer da possibilidade de alguém ficar à noite junto ao fogo da lareira com uma caneca de vinho e um caldo do pote. Hoje, mesmo entre pequenos burgueses, confunde-se facilmente com o hedonismo. Uma finíssima membrana separa o prazer (enquanto libertação das amarras do quotidiano comum) e os seus perigos. A sensação de bem-estar tende para a preguiça, o prazer da comida tende para a gula e o prazer sexual tende para a anulação do desejo. A temperança é uma exigência do prazer e simultaneamente a sua bomba-relógio.

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A Casa a Jusante da Ponte de Arame
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[Folhetim]
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