terça-feira, fevereiro 12, 2008

7.

O Poeta, um dos três namorados de Aline nos últimos anos (Manuela não conta), diria agora, chamado a terreiro: «o tédio, Aline, é inversamente proporcional ao desassossego de estar vivo; o tédio, Aline, é a demonstração de que a labareda do prazer se alimenta do seu próprio combustível; há quanto tempo, Aline, uma nuvem não é para ti senão uma nuvem, há quanto tempo não te percorre verdadeiramente a inquietação de um corpo que se deseja, há quanto tempo não choras a olhar a chuva a bater nos vidros das janelas num fim de tarde de Novembro, há quanto tempo não agitas as mãos na água de um tanque a ver a leve ondulação da corrente, há quanto tempo não adormeces com o desassossego de saber que o mundo permanece vivo por dentro dos sonhos?» Isso diria o Poeta, chamado a terreiro, caso o seu depoimento fosse relevante depois da condenação por associação criminosa num processo de roubo de automóveis de luxo. O certo é que Aline encontrou na cidade as suas defesas. Sente-se protegida pelo ruído, pelo anonimato, pelo movimento das ruas. Da varanda do apartamento vê o rio, os barcos e o rasto de prata que deixam nas águas, a outra margem, os telhados dos antigos armazéns, uma alameda com lódãos, uma estrada com automóveis correndo incessantemente a caminho de um lugar de onde um número igual de automóveis parte em sentido contrário. Mas Aline olha a fotografia da casa antiga e sente um súbito sobressalto; uma cicatriz no quotidiano; uma incursão inaceitável nas suas defesas. E parece evidente que o tédio há muito enrolou nos seus pulsos os fios da trama. E parece evidente que há muito, na sua vida, o prazer deixou de ser alvoroço e exaltação.