sexta-feira, fevereiro 22, 2008

4.

O sobrenatural não configurava um mundo subliminar ou uma entidade desligada do terreno chão e concreto. O sobrenatural (conta o dr. João Marcos) insinuava-se no quotidiano até não haver separação entre o prodígio ou o milagre e a realidade material. O sobrenatural estava presente nas mínimas coisas; misturava-se nelas. Ora acontece que Luísa era duma beleza trágica: porque à sua beleza se acrescentava uma sobranceria que parecia reverter do tédio e da distância. Isso fundava na comunidade um elemento de instabilidade (de desequilíbrio) inaceitável e que só poderia inscrever-se no domínio do oculto. A Luísa, portanto, se começaram a atribuir estranhos poderes; a ela se começaram a associar inusitadas ocorrências. Porque caiu a neblina sobre os campos da veiga no dia em que nasceu uma criança e aí permaneceu, numa nuvem espessa, até que morreu uma outra afogada num poço? Porque caiu um relâmpago na torre da igreja à meia-noite do dia doze de Dezembro e os dois ponteiros do relógio ficaram parados, sobrepostos, apontando ao número doze? Porque começaram a ver-se fogueiras em deriva nos montes saindo dos buracos dos canhotos furados dos torgos da urze? Porque Luísa, necessariamente, tinha estrangeirinha com o demo. O pai de Aline, claro, ria-se de tudo isto. Ele e Luísa continuavam o namoro. Eram vistos de mãos dadas. Tinham casamento marcado. E foi então que Luísa desapareceu. Sem deixar rasto. No dia em que tinha sido vista na cortinha, a manhã inteira, a recolher as giestas de que se faziam as vassouras das bruxas.