segunda-feira, março 31, 2008

34.

Dias seguidos, um depois do outro, olhando pela janela contra o edifício das Finanças, ou subindo ao lancil do pátio e olhando na direcção do que há-de ser a serra da Seixa, para além dos muros altos, Serapião não vê uma árvore. Não há uma árvore: um freixo, um amieiro, uma tília. O bolor, o poder da ruína, a água a escorrer do tecto, mesmo em Setembro, a meio da manhã, em não havendo uma nuvem de chuva ou neblina entre a terra e o céu. E João Pequeno? Não há notícia dele desde essa noite em que se mandou de cabeça pela janela do posto da Guarda, a meio do interrogatório, e desapareceu numa corrida trôpega por entre as macieiras e dois tiros nervosos disparados no escuro por um agente altivo que fizera com eles o exame da terceira classe.
33.

Num clamor, a camioneta da carreira desce ainda o caminho dos Campos das Trindades: mas Margarida vê já o desconhecido a entrar na Pensão Americana, a dizer «muito bom dia», a poisar no chão encerado uma mala de carneira cheia de pó. Margarida sabe que dona Fernanda sabe que esse dia poderá ser diferente; que ela o pressente de um modo difuso. Como se tudo pudesse começar de novo. Como se alguém chegasse e dissesse: aqui uma árvore, aqui um muro alinhado, aqui o caminho do monte, aqui um tanque, aqui uma casa, aqui uma encosta de carvalhos, aqui um ribeiro e suas águas sesserigas, aqui uma pedra, aqui uma fonte. E só então o mundo começasse. E só então a luz do seu corpo não queimasse as mãos e o corpo de quem acredita ainda no amor e não teme acariciar essa pele, enfrentar essa luz poderosa.
32.

Ana Ferreirinha recorda esse dia em que pela primeira vez um aroma forte de erva-cidreira se ergueu dentro de casa; um odor intenso como se pudesse tocar-se, como se pesasse nas mãos abrindo-as em palma, como se poisasse no escano, como se poisasse na mesa, como se fosse ficar para sempre entranhado no chão de terra batida. Recorda esse dia em que pela primeira vez se sentiu a si mesma: como se as águas do mundo, subterrâneas, se movessem de súbito e o seu corpo estremecesse num invisível sobressalto. Nesse dia, nessa manhã de Novembro, noite ainda, com o escuro atravessado pelo silêncio do vale: quatro luas depois de lhe faltarem as regras. Nessa manhã de Novembro o aroma intenso da erva-cidreira encheu a casa; um perfume espesso que podia tocar-se com as mãos. E então adormeceu. E, nítida, no sonho, uma voz que saía do interior do seu corpo: «mãe». E no dia seguinte, nessa manhã de Novembro a seguir à outra manhã de Novembro, o aroma leve da murta encheu a casa e ela adormeceu. E, nítida, noite ainda, com o silêncio do mundo a rebentar numa nuvem de sombra, de súbito, uma voz que saía do interior do seu corpo: «mãe». Todos os dias, dia após dia, cedo de manhã, noite ainda, um perfume diferente e, em adormecendo, uma voz que saía do interior do seu corpo: «mãe». E depois: «mãe, o vento». Ou: «mãe, as águas frias». Ou: «mãe, o céu, o azul, uma árvore, a chuva». [Não se ria – diz-me Maria Teresa. Não se ria: que sabe você das coisas do mundo?] Pedro nasceu de cinco meses e nunca mais disse uma palavra. Pedro, o Louco. Ana Ferreirinha recorda: tinha acabado de esfregar o chão da varanda da casa do largo, estava quase a sair. Nisto vê o doutor Magalhães num alvoroço; vinha da Pensão Americana; subiu a escaleira exterior, aproximou-se numa corrida, agarrou-a por um braço, fechou-a no quarto, deitou-a na cama, despiu-a com fúria. Parecia que escaldava, que as mãos e os braços e as pernas tinham saído de dentro de um incêndio na floresta. Dois meses depois ganhou coragem, disse-lhe: «estou grávida de vossa excelência».

domingo, março 30, 2008

31.

Pelo rectângulo da janela atravessada pelas grades (conta Maria Teresa) vê-se uma fita estreita de azul poisada nas telhas do edifício das Finanças. São dez e pouco da manhã. Não há uma nuvem de chuva ou neblina entre a terra e o céu. A camioneta da carreira segue a caminho do largo do Toural num rumor sobressaltado; não tarda que os gases e a poeira venham misturar-se à sombra húmida que desliza do pátio interior e depois se espalha pelo chão e pelas paredes da cela. Pelo rectângulo da janela atravessada por quatro ferros verticais vê-se por instantes a camioneta da carreira a passar em frente às Finanças. E depois uma nuvem de gases e poeira. Há vinte e seis meses exactos, subindo ao Alto da Ribeira, a patrulha da Guarda dá-lhes voz de prisão. Serapião Afonso e João Pequeno vêem-se de novo no posto da Guarda, de onde tinham saído ao fim da manhã. Mas agora a coisa fia mais fino: o doutor Magalhães aparece à entrada da porta acompanhado de Américo Matias; vêm com cara de caso. «Os senhores são acusados de assalto ao cofre da câmara municipal», dizia o cabo Mateus, «e há testemunhas idóneas. Aqui presentes, aliás». Que os viram a entrar no edifício pela banda do quelho, pela janela lateral que forçaram e retiraram do engonço; que estava era arrependido de os não ter encarcerado logo de manhã quando começaram a armar confusões no Toural com o Cardoso à mor da merda das vacas; que agora o que era preciso era repor o dinheirinho do cofre das receitas, e pronto.
30.

Luísa aproxima-se da porta do quarto em bicos de pés e fica por algum tempo à escuta. Encosta o ouvido à madeira e procura o som metálico de uma mala que se feche, o rumor de uma folha de papel a deslizar na escrivaninha, a ondulação de um lençol a ser puxado para a cabeceira da cama, o barulho da água a correr no lavatório, o cicio de uns lábios a ler uma carta. Não ouve um ruído. É como se o senhor professor nem respirasse. É como se fosse um fantasma. É como se a manhã, de súbito, parasse no tempo e alguém chegasse e dissesse: aqui uma árvore, aqui uma pedra, aqui uma fonte. E só então o mundo pudesse começar.

sábado, março 29, 2008

29.

É escuro ainda; um escuro atravessado pelo silêncio do vale. No escuro da noite, no escuro atravessado pelo silêncio do vale, Ana Ferreirinha levanta-se, veste-se, lava as mãos e a cara no lavatório de zinco. Depois senta-se no escano. Depois espera. Depois a luz começa a entrar em casa, a definir os contornos da masseira, da mesa de comer, da cama de dormir. Depois a luz começa a espalhar-se pelo chão de terra; depois sobe pelas paredes de pedra arrumada; depois um feixe de luz poisa nas suas mãos, entrando pela janela minúscula da parede do fundo, e traz de longe, descendo a Encosta da Mina, subindo pelo talvegue até Onde se Juntam os Rios, seguindo pela vereda da Encosta dos Matos, e depois pela Colina do Engenheiro (a que antigamente se chamava a Colina da Raia), e depois pelo caminho do Toural, e depois descendo de novo até entrar pela janela minúscula da parede do fundo: depois a luz traz de longe o aroma do alecrim. Só então o dia começa. Só então os dias começam verdadeiramente: quando um aroma forte, um aroma intenso, entra com a alba pela janela minúscula da parede do fundo; ou pelo intervalo entre duas telhas levantadas; ou pelas frinchas da porta: só então o dia começa. Porque só então, dentro de si, alguma coisa estremece, alguma coisa lhe diz que está viva, alguma coisa que chega de longe como se as águas subterrâneas se movessem de súbito e o mundo estremecesse numa exalação invisível do ar.

sexta-feira, março 28, 2008

28.

Margarida (conta Maria Teresa) recorda o momento preciso em que a doença de adivinhar o futuro havia de tocá-la para sempre: nessa noite de quinta-feira não conseguia dormir. Durante a ceia havia um silêncio pesado. O pai evitara comentários sobre a chegada do primo Carlos; a mãe levantou-se da mesa para esconder as lágrimas. «Vem ferido?», perguntou. Que não. «Mas depois falamos do teu primo.» Não conseguia dormir: o rumor das águas de lima, o rumor das águas da nascente da mina; o alarido das águas crescendo no quarto: as águas do tanque, a água da ribeira do Fontão, a água da Presa do Moinho. Aos poucos, um a um, começava a identificar os ruídos todos da noite. Não conseguia dormir; as pálpebras cerradas a iludir a vigília. E de súbito, no escuro do quarto, vê a imagem do primo Carlos. Nítida. A imagem do primo: deitado numa cama de ferro da casa do largo, a luz da manhã a entrar pelo rectângulo da janela, a iluminar os losangos da colcha. De quando seria essa imagem? Da manhã do dia seguinte, de um dia qualquer de Setembro do ano seguinte, de um dia qualquer alguns anos depois? O primo regressado da guerra. A sua imagem nítida: deitado numa cama de ferro, os olhos atados a um qualquer momento de sombra que o haveria de acompanhar para sempre, que ficaria para sempre agarrado aos seus olhos, às suas mãos, à sua pele, à sua memória, à sua vida. Margarida não conseguia dormir: o rumor das águas de lima, o rumor das águas da nascente da mina, o alarido das águas crescendo no quarto, as águas do futuro crescendo no interior do seu próprio corpo.
27.

Quando acordou pela primeira vez numa cela escura da cadeia civil, há vinte e seis meses exactos, Serapião compreendeu que estar preso é não ter uma árvore, não ter um rio, não ter uma encosta por onde descer a caminho do rio, não ter a luz da encosta a descer a caminho das margens do rio. Há vinte e seis meses exactos: Serapião Afonso está sentado na mesa grande da taberna da Emília. O ti Alcino vendera nessa manhã a parelha de vacas ao Vicente de Curros. É certo que o negócio estava apalavrado com o Cardoso. Mas o Vicente de Curros olhava os bichos de frente e de trás, mirava-os de cima, ajoelhava-se no chão e apreciava-lhes o ventre, passava-lhes a mão pelos lombelos: a cabeça larga e o focinho negro, o perfil côncavo, o pescoço breve, as nádegas anchas: a Marela de um castanho quase palha, a Joaninha acerejada: ambas com a cornamenta da estirpe, em forma de lira; ambas e duas com fitas coloridas nos chifres untados com azeite. «Sim senhora», repetia o de Curros, «sim senhora». Nisto chega o Cardoso: que o Alcino não tinha nada que vender as vacas sem lhe falar primeiro. «Mas se o negócio nem estava sinalizado, homem», defendia-se o Alcino. «Sinalizava-se», respondia o Cardoso. E sem mais aquelas levanta o pau de lodo e prepara-lhe a investida descendente direita à cabeça. Serapião, num pulo, agarra-lhe o braço, João Pequeno deita-o por terra, a Guarda toma conta da ocorrência; deixam o toural, seguem para o posto em fila quase indiana. Passa do meio-dia quando terminam as inculcas e desandam até novas ordens. Alcino já tem a fazenda descuidada, convida-os para o fim de tarde na taberna da Emília. «Bem o merecendes.» De maneira que assim foi. Sentados na mesa grande, revendo a aventura da manhã, comem iscas de bacalhau e bebem vinho de Anelhe. Emília está de rastos. Nos dias de feira é um corrupio desde o nascer do sol, os homens a matar o bicho com nozes e aguardente, a comer polvo cozido e chicharros de escabeche, a entrar e a sair até ao fim da noite, às vezes madrugada dentro. A taberna, aos poucos, vai ficando vazia; a serradura do chão numa pasta única. Alcino pede mais uma caneca de dois quartilhos de tinto. Chega-lhe com o dedo. Sai às onze da noite. Serapião ampara-lhe os primeiros passos a caminho da rua, diz «vá-me com cuidado, homem», senta-se de novo à mesa grande. Emília traz dois cálices de licor de cereja: «é adoçar a boquinha e putas-ao-sameiro». João pequeno ainda puxa do realejo, cantam depois a ribeirinha num coro desafinado, erguem-se de novo. Emília suspira, fecha o portão pintado de verde. Serapião e João Pequeno seguem agarrados a trautear a ribeirinha, ficam por algum tempo sentados numa pedra do muro, lavam a cara na água do tanque do Toural, sobem ao Alto da Ribeira. Param de novo, cantam ainda, seguem de novo. Nisto a patrulha da Guarda faz-lhes frente, dá-lhes voz de prisão, as espingardas em riste. «Ó mestre, isto há-de ser a brincar», diz o Serapião. «Caluda, e é seguir em frente.» Quando acordou pela primeira vez na cela escura da cadeia civil, há vinte e seis meses exactos, Serapião Afonso compreendeu que estar preso é não ter uma árvore, não ter um rio, não ter uma mata de carvalhos onde procurar a sombra dos meses de Julho.
26.

Ainda antes desse ruído sobressaltado se anunciar na curva do Alto do Barco de Pedra (continua Maria Teresa), e depois descer num clamor a caminho dos Campos das Trindades, Margarida adivinha a chegada da camioneta da carreira, do mesmo modo que adivinha já a chegada da chuva pelo fim da tarde: uma nuvem há-de tocar os pinheiros mais altos da serra da Seixa, e depois atravessar a veiga, e depois a Encosta dos Matos; e depois outra nuvem, ligeiramente mais escura; e só depois um manto da largura do vale; e só depois a chuva. Alguém dirá: «parece impossível, levantei-me cedo, não havia uma nuvem de água ou neblina entre a terra e o céu».

quinta-feira, março 27, 2008

25.

Pelo rectângulo da janela atravessada pelas grades, entre quatro ferros verticais, vê-se uma fita estreita de azul, em não havendo nuvens, poisada nas telhas do edifício das finanças. O resto é sombra. Uma sombra húmida que vem do pátio interior e depois se arrasta pelo chão e pelas paredes das celas: o bolor, o poder da ruína, a água a escorrer do tecto, mesmo em Setembro, a meio da manhã, em não havendo uma nuvem de água ou neblina entre a terra e o céu. Dias seguidos, um depois do outro, olhando pela janela contra o edifício das finanças, ou subindo ao lancil do pátio e olhando na direcção do que há-de ser a serra da Seixa, para além dos muros altos, Serapião Afonso não vê uma árvore. Não há uma árvore: uma árvore de fruto a que pudesse, em começando a abrir, ou quando a flor irrompe contra a memória da neve, derramar-lhe nas folhas um pouco de cal, de cal viva, de cal em pó, misturada no enxofre, muito cedo de manhã, com as gotas ainda do orvalho, ou depois da chuva, quando o odor da terra começa a levantar-se. Uma árvore: um freixo, um amieiro, uma tília; a prata dos álamos; o verde brilhante dos negrilhos jovens, um carvalho negral, o branco dos vidoeiros antes do Inverno.

quarta-feira, março 26, 2008

24.

Dona Fernanda (conta Maria Teresa) escolhe um vestido de festa. É como se tudo pudesse começar de novo. Atrás do balcão corrido da Pensão Americana, vagarosamente, arruma os papéis, o livro de registos. Luísa vem de calafetar as janelas do primeiro andar com panos húmidos e a dizer mal do pó levantado pela camioneta da carreira: tem um sorriso rasgado, a saia quase à altura dos joelhos, um decote de furco, o cabelo apanhado num pregador colorido. Atrás do balcão, à espera, Fernanda muda de sítio o livro de registos, as mãos nervosas, o aroma do alecrim a misturar-se no ar. O desconhecido entra. Abre a porta da pensão, pára por instantes, olha em redor, atravessa o átrio, diz «muito bom dia», poisa no chão encerado uma mala de carneira cheia de pó. Dona Fernanda recorda a primeira vez em que se despiu diante de um homem: foi há tantos anos: a luz do seu corpo a iluminar as paredes do quarto; era impossível olhar de frente esse esplendor; um incêndio. Nua, Fernanda. E então o engenheiro das florestas cerrou os olhos, as mãos de súbito pelo corpo todo numa aflição como se uma doença o atormentasse desde o princípio dos tempos. A arder. Gritou, saiu numa corrida, uma dor que se adivinhava à distância no escuro da noite. Ninguém o viu durante o resto da noite. Na manhã seguinte encontraram-no morto, suspenso de uma corda no carvalho da colina da Raia. Enforcado. Dizem que tinha os olhos queimados: a pele arroxeada, escamada, fendida, como se um incêndio houvesse lavrado a noite toda no interior do seu corpo.
23.

Ainda antes desse ruído sobressaltado se anunciar na curva do Alto do Barco de Pedra, e depois descer num clamor a caminho dos Campos das Trindades, Margarida adivinha a chegada da camioneta da carreira: no imperceptível estremecer das folhas do salgueiro; no bater das asas de um milhafre que se levanta sobre a cumeada; na ondulação ligeira da água do tanque. São dez da manhã. Não há uma nuvem. Margarida acordou cedo, a luz ainda indecisa na colina: se pode chamar-se dormir a esses minutos breves em que uma pequena paz lhe permite cerrar as pálpebras. Durante a noite, durante a noite toda: o ruído da madeira das traves da cozinha, da hera a crescer nas paredes da casa, das águas de lima, da luz do quarto minguante poisada nas telhas e no chão de granito da eira, da nascente da mina: durante toda a noite, dia após dia, ano após ano, Margarida não dorme. É assim há três anos: ouve o mais leve ruído a crescer do interior da terra, da superfície das águas, da folhagem, da ramagem, do voo das aves. Um alarido às vezes insuportável. Há três anos que praticamente não consegue dormir.

terça-feira, março 25, 2008

22.

Américo Matias passa a língua pelos lábios secos. Embrulha vagarosamente as peças, uma a uma, cuidadosamente, dobrando em trapézio as pontas do papel com flores estilizadas. Luísa não usa corpete e não é certo que uma cinta apertada lhe modele as ancas levantadas. Américo recorda: um dia, uma noite de Novembro, ficou até tarde no serão de dona Fernanda. Chovia que deus-e-a-dava. Soprada pelo vento da Seixa, oblíqua, a água entrava por debaixo da portada; a lareira acesa protegia-os da tempestade e do mundo. Luísa adormecera no maple corrido, a cabeça muito perto do seu ombro. Dona Fernanda pediu licença por um minuto, subiu ao primeiro andar a verificar as janelas, «esta chuva que não há meio de parar». Chovia como se chovesse desde sempre. Ficaram sozinhos: Américo e Luísa. E Américo Matias deixou que a sua mão direita se perdesse na cintura de Luísa. Ouvia lá em cima os passos no soalho, uma porta a fechar-se. O vestido tão fino que era possível sentir, passando a mão aberta, vagarosamente, quase sem tocar, mais que a pele, os minúsculos poros da pele. As pernas de Luísa, a curva dos joelhos. Não podia ser que dormisse. Respirava de um modo diferente. [Não sorria (diz Maria Teresa): foi assim que me contaram. Eram outros tempos, claro, a linguagem era outra. Enfim, continuemos...] Chovia que deus-e-a-dava. Soprada pelo vento da Seixa, a água da chuva. Como se chovesse desde sempre. Dona Fernanda desceu. Era tarde. Agora, hoje, uns quatro ou cinco anos depois dessa noite de chuva, na penumbra da loja, lá fora o sol da meia manhã de Setembro, Américo Matias embrulha vagarosamente as peças, uma a uma, cuidadosamente, dobrando em trapézio as pontas do papel com flores estilizadas. O odor do alecrim quase embebeda. Chega da encosta do outro lado do vale, pára por instantes no largo, sobe a rua Direita e seu pequeno labirinto de curvas e veredas adjacentes, desce os três degraus do Comércio Central, cola-se irremediavelmente às estantes envernizadas, ao balcão de castanho, ao papel pardo dos embrulhos, ao fio do norte, às mãos agitadas de Américo Matias. Luísa sai da penumbra da loja sem pressa. As suas ancas iluminam como uma aparição a manhã de Setembro.
21.

Fernanda sobe de novo, despe o roupão, passa a mão esquerda, com volúpia, pelo ventre liso, a luz do seu corpo a iluminar as paredes do quarto [que é como quem diz, claro], a manhã indecisa a entrar pela janela virada ao nascente. Recorda a primeira vez em que se despiu diante de um homem. O engenheiro chegara em Novembro de mil oitocentos e oitenta e nove; passava os dias na serra com a brigada da floresta. À noite, depois da ceia, estendia as cartas topográficas na mesa da sala, os dedos finos, os modos galantes. Em fins de Fevereiro, à experiência, começaram as primeiras sementeiras e plantações: dezenas de homens e mulheres a desmatar a encosta, a abrir covas, o penisco, os pinheiros minúsculos a desenhar uma nova paisagem. À noite, depois da ceia, o engenheiro estendia as cartas topográficas na mesa da sala, os seus modos galantes. A taberna fechava cedo, o engenheiro foi o primeiro hóspede da casa de pasto: só mais tarde a taberna se transformou em pensão. Dona Fernanda recorda: nessa noite ficaram sozinhos na sala, as cartas topográficas estendidas na mesa, os seus dedos finos, os modos estrangeiros. Tinha quê? dezasseis anos. O engenheiro olhou-a nos olhos, tocou-lhe os cabelos, os ombros, o rosto. Era como se mais nada existisse no mundo para além dos seus dedos finos, os modos estrangeiros. E então subiram. [Sabe você (continua Maria Teresa) como me contaram este momento? Que, de súbito, no quarto muito escuro, a luz do corpo nu de Fernanda iluminou as paredes, o jarro com água, o livro de botânica, as velas de sebo, o lavatório, a pequena cómoda. Que, de súbito, no quarto muito escuro, era como se lavrasse um incêndio. Que a luz do seu corpo iluminou as paredes do quarto. Que era impossível olhar de frente esse esplendor.]
20.

Deitado na cama de ferro, com a cabeça erguida em duas almofadas de sumaúma, Carlos, o Alferes, roda com enfado o convite manuscrito com volutas desenhadas a tinta-da-china. Pelo rectângulo da janela, diluída na espessura dos vidros, vê ao longe a encosta do outro lado do vale, virada ao norte, com seus pinheiros verdes e azuis, entrevê o voo largo de uma ave iluminada pelo sol da meia manhã de Setembro. A camioneta da carreira arranca finalmente pela rua de Cima, esgotadas as negociações para a retirada de um caibro de quinze arrobas atravessado na estrada: o ruído sobressaltado do motor, a algazarra das crianças correndo a seu lado. Às vezes pensa que tudo pode começar de novo. Três anos fechado no quarto da casa do largo, deitado na cama de ferro. Lá fora o voo de uma ave iluminada pelo sol de Setembro.

segunda-feira, março 24, 2008

19.

Luísa (continua Maria Teresa) vai às compras. Em frente ao armazém de mobílias parece que pariu a galega. São dez e quarenta e cinco. Américo Matias olha a prancha original do convite desenhado pelo Lindinho e é surpreendido pelo brilho do papel couché a reflectir um rosto de mulher: seu sorriso rasgado e atrevido, suas pálpebras em leque. Luísa tem uma saia quase à altura dos joelhos, um decote furqueiro, o cabelo apanhado num pregador colorido. Uma aragem leve mistura no ar o aroma denso do alecrim e por instantes é difícil distingui-lo do aroma da sua pele muito branca, das suas mãos movimentando-se enquanto fala, das suas mamas espetadas contra a blusa de riscado. Américo, interdito, não diz coisa com coisa. Na loja, na penumbra da loja, Luísa corre a estante das louças. Dona Fernanda não olhará a despesas para que o senhor professor (parece que é professor) possa juntar ao prazer da carne de cabrito a volúpia de um serviço de jantar com paisagens dos alpes ou flores entrelaçadas. Uma dúzia de copos de pé alto, uma dúzia de taças, outro tanto de pratos com o desenho de um lugar idílico, campestre, em azul cantábrico, duas travessas, uma terrina de sopa. Luísa corre a estante das louças. Américo Matias vai olhando de lado; e passa a língua pelos lábios secos.
18.

Há vinte e seis meses exactos: João Pequeno e Serapião Afonso bebem dois cálices de licor de cereja e saem da taberna da Emília. Pedro, o Louco, ficou até mais tarde na Vila. Do alpendre da casa velha, junto à figueira, vê-os sair, sentarem-se por instantes numa pedra do muro, seguirem a caminho do Toural. Pedro não compreendeu logo o que fazia Américo Matias dentro do edifício da Câmara, de vigia, colado pela sombra da noite aos vidros da janela que depois abriu num estalido e tirou do engonço. O comerciante saiu e correu na direcção da casa do largo. Passado algum tempo, Pedro viu o doutor Magalhães a descer pela escaleira exterior. Ficaram ambos parados (Américo e o doutor) um momento breve. Depois, numa corrida nervosa, rumaram em sentido contrário até ao posto da guarda.

quinta-feira, março 20, 2008

17.

Às vezes é como se a vida pudesse fazer sentido: o riso das crianças, o ruído sobressaltado de um motor, o sol a iluminar o voo das aves. Carlos, o Alferes, imaginou-se a descer a escaleira exterior da casa do largo, a passear na margem da ribeira do Fontão, a visitar os primos da Granja, a combinar as férias na Póvoa. Lembra-se de Margarida, num tempo em que os sonhos eram ainda possíveis, e de as suas mãos se tocarem; recorda as lágrimas de cada vez que partia de novo: as suas lágrimas e o seu riso quando lhe contava as tristezas e as grandezas da guerra. Lembra-se de Luísa: dos seus olhos de amêndoa, do seu sorriso rasgado, atrevido; das suas pálpebras em leque. Era uma tarde de Verão. As moscas zumbiam contra os vidros das janelas da Pensão Americana. A banda de música de Fermil subia com solenidade a rua do Toural; os andores da Senhora da Livração e de São Benedito; os anjinhos; o senhor bispo da diocese sob o pálio lilás; as velas acesas de promessas e graças concedidas. Era uma tarde de Verão; quinze de Agosto. Subiram o primeiro lanço dos degraus, parararam por instantes; continuaram até ao quarto dos fundos. Luísa despiu-se: os olhos de amêndoa, os lábios finos, as pálpebras cerradas. Carlos fechou a janela, correu as cortinas, aproximou-se devagar, deitou-se a seu lado.
16.

Uma nuvem de gases e poeira (conta Maria Teresa) levanta-se da rua, espalha o tisne e a fuligem pelos móveis da sala, pelo chão encerado do átrio, pela mobília dos quartos do primeiro andar. Fernanda, dona Fernanda, vem à janela: o doutor Magalhães acaba de subir à varanda da casa do largo, não tardará a sentar-se na cadeirinha de lona e a enfiar os pés descamados na bacia de porcelana. Fernanda levantou-se cedo, a luz ainda vacilante na colina. Desce ao salão, abre o louceiro de carvalho, olha com minúcia, uma peça e depois outra, o serviço de jantar. É preciso ir às compras. Levantou-se cedo; não há uma nuvem de água ou neblina entre a terra e o céu; o espinheiro-da-virgínia do Toural ergue-se contra o céu de fins de Setembro como se o mundo começasse a nascer com a manhã ainda indecisa. Como se alguém dissesse: aqui uma árvore, aqui um muro alinhado, aqui o caminho do monte, aqui um ribeiro e suas águas sesserigas, aqui uma pedra, aqui uma fonte. Como se o mundo só então pudesse começar. Como se alguém dissesse: aqui uma pedra, aqui uma fonte; e agora a luz a descer a colina, a estender-se no vale e na encosta de carvalhos, a descer o ribeiro e suas margens, a descer o caminho do monte. Como se tudo pudesse começar; como se nada existisse ainda entre a terra e o céu.

quarta-feira, março 19, 2008

15.

Deitado na cama de ferro, com a cabeça erguida em duas almofadas de sumaúma, Carlos, o Alferes, roda com enfado o convite manuscrito com volutas desenhadas a tinta da china. Pelo rectângulo da janela, diluída na espessura dos vidros, vê ao longe a encosta do outro lado do vale, virada ao norte, com seus pinheiros verdes e azuis, entrevê o voo largo de uma ave iluminada pelo sol da meia manhã de Setembro. O senhor seu pai acaba de passar a caminho da varanda, não tarda que arregace as mangas em dobras simétricas, puxando a cadeirinha de lona para junto do gradeamento de ferro forjado. Às vezes apetece-lhe recomeçar tudo de novo; regressar ao dia mágico em que uma nave voadora sobrevoou a Vila e ele compreendeu que o seu destino ficaria para sempre agarrado a essa imagem, à sombra ampliada do avião a atravessar o chão da veiga, a distorcer-se nos ciprestes do cemitério e na parede estreita da torre da igreja, a subir a encosta dos Matos, a aproximar-se por instantes da parte inferior da aeronave, até que uma e outra, sombra e aeronave, desapareceram para além da linha de cumeada. Nesse dia, nesse dia distante, soube que também ele haveria de sobrevoar a Vila e o mundo, que a sombra da sua aeronave correria ampliada percorrendo a veiga, a colina do Engenheiro, as encostas da Seixa, o mar oceano. Às vezes: como hoje, uma ave luminosa sobre a cumeada, o sol de fora a adivinhar-se no amarelo muito vivo dos losangos da colcha, o aroma do alecrim levantado no ar, o riso das crianças a correr atrás da camioneta da carreira.
14.

Manuel Pequeno, o Piças, entra de novo na taberna. Pede mais um copo de cachaça. Não tarda que as suas pernas e os seus braços, e depois o corpo todo, comecem a traí-lo em movimentos de circo. O ruído sobressaltado de um motor leva-o à rua. A camioneta da carreira sobe vagarosamente a caminho do largo como se chegasse de uma viagem à roda do mundo. Oito passageiros procuram reconhecer as bagagens de entre uma nuvem de pó. Um desconhecido tira o relógio do bolso do colete. Lalice estende na rua um caibro de quinze arrobas. Pedro mistura na manhã de fins de Setembro (como nos romances sul-americanos) um odor intenso a alecrim. O doutor Magalhães, na varanda da casa do largo, acaba por sentar-se na cadeirinha de lona e enfiar as patas na bacia de porcelana. Manuel Pequeno cambaleia por instantes, olha de novo a circunferência do largo. O filho, mais uma vez, não chegou à Vila: como se a camioneta da carreira não acrescentasse nada ao mundo conhecido. Do outro lado do vale, sobre a cumeada, um milhafre continua a planar como se tudo estivesse conforme com a ordem do mundo.
13.

Na rua Direita, entretanto, Américo Matias sobe os três degraus que separam do acesso o espaço amplo da loja envolvida permanentemente por uma gaze de sombra. O Comércio Central tem o monopólio local da pólvora do estado e um completo sortido em artigos funerários, açúcar e café, bacalhau da noruega, arroz, sabão e pregagens, louças de serviço, vidros, miudezas, camisaria, luvas e calçado de Lisboa, chapéus, bolachas e vinho fino, tintas para pinturas, óleos e vernizes. Enquanto a guerra alastrava na Europa, e o Echos recenseava quinzenalmente os soldados do distrito que já não regressariam do front, e o preço do carbonato proibia a iluminação pública semanas a fio, e se consolidava o racionamento do pão e do açúcar, Américo Matias enriquecia e convidava a sociedade elegante da Vila para matinés dançantes com champanhe e biscoitos ingleses. As tradições, na província, perdem-se devagar. A guerra já findou, não há bem que sempre dure. Mas o que é preciso é estar vivo. E Américo roda com volúpia nos dedos grossos a prancha original do convite desenhado pelo Lindinho enquanto uma nuvem cinzenta desce do Toural e anuncia a partida da camioneta da carreira.
12.

Manuel Pequeno (conta Maria Teresa) desce a rua do Toural. Pedro, o Louco, segue-o à distância e senta-se depois no muro dos correios. Fernanda, dona Fernanda, vem à janela da Pensão Americana, afasta os cortinados com suas cornucópias vermelhas e azuis e desaparece de novo. O doutor Magalhães acaba de subir à varanda da casa do largo. Uma nuvem de gases e poeira anuncia a chegada da camioneta da carreira. Lalice fuma um cigarro à porta do armazém de mobílias. Manuel Pequeno entra e sai da taberna, acaba por sentar-se no murete adossado à empena escalavrada, o seu ângulo de visão condicionado ao movimento em arcos de círculo do pescoço e ao trabalho quase mecânico das suas veias muito salientes. O seu corpo estremece quando o olhar, e portanto a cabeça em bloco, sobe à varanda da casa do largo no momento preciso em que o doutor Magalhães puxa uma cadeirinha de lona branca e azul para junto do gradeamento de ferro forjado e arregaça as mangas da camisa em dobras simétricas.

terça-feira, março 18, 2008

11.

[Maria Teresa faz uma pausa e pede-me desculpa pelos «excessos de linguagem», pela «inusitada cópia de pormenores», pela «quantidade de personagens» que vai entrando na narração: «e isto ainda não é nada.» Diz saber que ficarei confuso, que me obrigarei a rever as minhas notas procurando ligações insuspeitas. E defende-se: «Tenho para mim que uma história deve contar-se como nos foi contada; se me contaram assim, assim lha entrego: sem acrescentar um ponto; sem mudar um til. Já quanto ao que disser da minha lavra, enfim, tenho os meus critérios.» Não posso deixar de sorrir: enquanto autor responsável pelo produto final desta história, passando a limpo textos apócrifos e cartas missivas, reproduzindo os diversos relatos, organizando a estrutura narrativa, não procuro outra coisa que não seja não mudar um til. Mas afinal sabemos ambos, eu e Maria Teresa, que a verdade fica sempre algures entre o que se ouve e o que se escreve, o que se viu e o que julgámos ver.]
10.

Pedro, como num romance sul-americano (continua Maria Teresa), escolheu nesse dia o odor do alecrim. Desceu o caminho do Toural e sentou-se no muro dos correios à espera da camioneta da carreira. Não é ainda a alba. Uma leve aragem cresce do rio quando a névoa começa a levantar-se e se estende pelo jardim da casa em ruína. Pedro acorda com o rumor das folhas dos salgueiros, levanta-se da esteira, passa o umbral, recolhe um minúsculo ramo de alecrim, senta-se na escaleira do pátio e olha a luz que há-de começar a levantar-se, em levantando a névoa, sobre os pinheiros mais altos da serra da Seixa. A Vila, não tarda, começará também ela a erguer-se de entre o lixo das ruas, de entre a sombra das paredes escalavradas, de entre a humidade dos muros, de entre o cheiro de excrementos humanos vazados dos alpendres. Homens e mulheres sairão de casa, entrarão em casa, descerão à veiga, subirão ao monte. Muitos haverão de escolher a sombra em vez da luz. A indiferença em vez do alecrim misturado no ar.
9.

Manuel Pequeno, pai de João Pequeno, está sentado no murete da taberna da Emília. Dia após dia, quando as aves da lagoa do Alto da Ribeira começam a afastar-se na direcção das encostas viradas ao norte, em sendo o Verão, e sobrevoam depois a cumeada planando em voos largos, ou rumam à veiga e se acolhem no leito de cheia à procura da precária luz dos meses frios do Outono e do Inverno, Manuel Pequeno desce a caminho do Toural e bebe aguardente com açúcar na taberna da Emília. Nem o álcool traz aos seus olhos uma única luz, um reflexo, um movimento, uma fugidia sombra. Como hoje: a camioneta da carreira chegou pela primeira vez à Vila, parou no Toural, partiu e parou de novo junto ao armazém de mobílias de Lalice. Pedro, o Louco, viu Lalice a levar um caibro de quinze arrobas atravessado um pouco acima da cintura e a estendê-lo de lado a lado na estrada de saibro; e começou a rir-se tão alto que as aves da Corredoura se desprenderam dos ramos das tílias.

segunda-feira, março 17, 2008

8.

Há um odor intenso de alecrim (conta Maria Teresa) misturado no ar de fuligem. Como no primeiro capítulo dos romances sul-americanos. Lalice abriu o portão das traseiras e saiu ao combarro, desviou umas tábuas de esquadria e pegou num caibro de quinze arrobas, levou-o atravessado um pouco acima da cintura e estendeu-o de lado a lado na estrada de saibro; arrumou-se de novo à pedra da entrada e ficou à espera, os braços cruzados, a perna esquerda flectida ligeiramente, até que a camioneta da carreira arrancou e parou quarenta metros depois com a passagem impedida: as crianças num alarido como se tivesse parido a galega. A camioneta parou com o motor ao ralentim. O motorista saiu e pediu «ao cavalheiro, em nome do progresso», que desviasse o pau. E o Lalice ria-se. E perguntou se a camioneta «não fazia cavalinhos». E riu-se de novo. E puxou um novo cigarro (a manhã clara, sem uma nuvem) em gestos de uma lentidão exasperante.
7.

Lá terá as sua razões (continua Maria Teresa) o doutor Magalhães. Que não nasceu ontem. Que já lhe tirou as medidas. Que já viu este filme, que é como quem diz. Olha o desconhecido e senta-se na cadeirinha de lona. Tem o sobrolho carregado e enfia os pés na bacia de porcelana. E sente essa turva exalação do enxofre da água das caldas santas. E deixa que o sol lhe percorra as pernas e os braços. Que a luz inicie os seus trabalhos de lenta depuração. É alérgico à sombra: doença filha da puta. A sombra não o deixa em repouso durante a noite. A sombra a dilacerar-lhe a pele. Noite após noite. Um formigar em hélice. A pele a escamar, a fender, a encapelar. Depois estica o pescoço e vê o desconhecido a entrar na Pensão Americana. E imagina já a Fernanda a estender-lhe a mão, a cumprimentá-lo, talvez a apreciar o seu rosto esquálido, os seus modos estrangeiros. E recorda o dia longínquo em que tocou o corpo de Fernanda. Em que ela se despiu diante de si. Em que a tocou a medo. Como se tivesse medo do seu próprio corpo. Lembra-se. Lembra-se de ter corrido as portadas até a penumbra os envolver em intimidade e silêncio. E de um incêndio, uma espécie de incêndio, de súbito, encher o quarto. E de ver assim esse corpo que desejava tanto a erguer-se numa labareda. A iluminar as paredes quase nuas. A transformar em fogo a última ceia emoldurada em pau de cerejeira. A irromper numa espiral de vertigem. Lembra-se. Lembra-se ainda de ter ousado tocar esse fogo. De quase ter tocado esse fogo. Esse lume leve. E de sair depois numa corrida. Como se ardesse. E de pensar por um instante breve que talvez fugisse de si mesmo e que talvez fugisse para sempre da luz do amor. Da luz em espiral do amor. E depois disso é alérgico à sombra. E precisa da luz. Há doenças do caralho, que parecem de romance, e é bem certo.
6.

Um desconhecido sai da camioneta da carreira. Fica por instantes interdito como se procurasse um ponto de referência. É magro como um espeto. Tem ar de maricas. Tira o relógio do bolso do colete e abre a tampa de prata. Olha depois em direcção ao sol da meia manhã de Setembro com as mãos transparentes em pala: deve estar a confirmar pela ordem do mundo as qualidades mecânicas do seu instrumento suíço de precisão. Depois, sacudindo a poeira do casaco escuro, troca breves palavras com o motorista da camioneta. E avança para a entrada da Pensão Americana. A mala de carneira e passos decididos. Como se um outro mundo, sacudindo a poeira do casaco escuro, pudesse começar (o orgulho, a displicência) a partir das suas frases e do seu modo de olhar em redor.
5.

A camioneta tinha chegado exactamente às dez e quinze. E estava anunciado que a camioneta da carreira chegasse às dez e quinze, duas vezes por semana, do outro lado do mundo. O doutor Magalhães olhou na direcção da casa de mobílias, olhou a camioneta, sentou-se na cadeirinha de lona, sentia-se infeliz, não se teve que não dissesse «veio à tabela a filha da puta».

domingo, março 16, 2008

4.

E então Lalice veio à janela (conta Maria Teresa) e olhou a casa do largo como se também ela pudesse ruir, de súbito, por entre o tisne e a fuligem. O doutor Magalhães acaba de subir à varanda. Puxou a cadeirinha de lona branca e azul para junto do gradeamento de ferro e arregaçou as mangas da camisa em dobras simétricas. Não tardará que venha a sentar-se flectindo cuidadosamente os joelhos e puxando ligeiramente as calças, tirando depois os sapatos de verniz e as peúgas de algodão, enfiando finalmente os pés descamados na bacia de porcelana. Mas por enquanto fica ainda a olhar o perímetro do mundo: a encosta do outro lado do vale, virada ao norte, os pinheiros que a seus olhos se erguem cinzentos e castanhos, o voo de um milhafre sobre a cumeada, a nuvem de gases e poeira que começa a espalhar-se em redor e a precipitar até ao ocre do saibro. Também ele, como Lalice, teme a chegada da camioneta da carreira. Também ele concede que o mundo seja maior que o perímetro da bacia hidrográfica do Terva. Mas custa-lhe admitir que alguém possa chegar de longe; teme que alguém possa chegar e instituir uma nova ordem ou impor um novo conjunto de regras. Porque tudo tinha já os seus limites estabelecidos, as suas fronteiras desenhadas. E a camioneta da carreira trazia consigo, mais que o rumor dos motores e uma nuvem de fuligem, a ameaça do que não tem ainda um nome.

sábado, março 15, 2008

3.

Comecemos, pois (conta Maria Teresa), por essa manhã de fins de Setembro de mil novecentos e vinte e um em que a camioneta da carreira chegou pela primeira vez à Vila. A manhã tinha nascido clara, sem uma nuvem, sem uma aragem a agitar as folhas das árvores. Lalice estava no torno e veio à pedra da entrada. Acendeu um cigarro. No ar, olhando na direcção do nascente, via-se agora uma nuvem de gases e poeira, de cinza e gasóleo queimado, de tisne e fuligem. E Lalice imaginava essa sombra a erguer-se, essa película espessa e peganhosa a revolutear, a alargar-se, a cobrir, aos poucos, a urze da encosta, o espinheiro-da-virgínia do Toural e o jardim dos Correios, os carvalhos da Rua de Cima, os vidoeiros do Noro, a sebe de sempre-noiva, uma nuvem de pó e gasóleo a espalhar-se pelo chão e pelas paredes do armazém de mobílias. «Hão-de foder tudo», dizia Lalice enquanto apagava o cigarro com as botas gaspeadas de couro e desaparecia de novo no armazém iluminado por uma janela larga rasgada ao nascente. «Hão-de foder tudo», dizia, como se a combustão dos gases quebrasse o ciclo do ozono, como se temesse que o gasóleo ou o ruído sobressaltado do motor da camioneta da carreira queimassem as folhas das árvores ou abrissem fendas nas paredes de taipa, como se a sua preocupação fosse o aquecimento global, ou a destruição da camada de ozono, ou o consumo insustentável de recursos fósseis, ou a poluição atmosférica, como se os ecologistas trouxessem do futuro os seus folhetos coloridos em papel reciclado e doutrinassem Lalice contra o ruído sobressaltado dos motores das camionetas. Não: Lalice concedia que o mundo fosse maior que o perímetro da bacia hidrográfica do Terva. Mas o seu mundo era esse: começava nas cumeadas da serra da Seixa, descia a encosta, prolongava-se até à Raposeira, continuava por alturas do Barco de Pedra e fechava, a poente, na Colina do Engenheiro. O resto era apenas um silêncio ameaçador, um rumor de promessas por cumprir. Temia o desconhecido, portanto, e não tanto a fusão dos gelos do Ártico.

sexta-feira, março 14, 2008

2.

Aline (conta Maria Teresa) nasceu em mil novecentos e sessenta e oito. Mas a sua história podia começar no dia distante em que os cães do Pai Ventura morreram afogados na corrente gelada das águas da ribeira do Fontão. Ou umas décadas depois, nessa manhã de Setembro em que a camioneta da carreira chegou à Vila e encontrou o Lalice desavindo. Ou mais tarde ainda, em mil novecentos e cinquenta e nove, quando um topógrafo de Lisboa foi visto a tirar miras na Ponte Pedrinha e se descobriu que uma mulher deslumbrante o acompanhava. É indiferente. Porque as histórias repetem-se ao longo do tempo: só mudam os nomes, os lugares, a paisagem. É como se as pessoas fossem sempre as mesmas. A repetir os mesmos gestos. A insistir nos mesmos erros. Por isso há-de desculpar a minha desatenção quando subverter a cronologia dos factos, quando a inverosimilhança baralhar os fios do relato, quando um personagem desaparecer sem que se lhes dê paradeiro, quando um outro surgir a despropósito.

quinta-feira, março 13, 2008

Capítulo VI

(Onde Maria Teresa acaba por contar a história duma manhã distante de 1921 como se pegasse em peças dispersas de um puzzle, onde vamos percebendo que há histórias que ficam sempre por contar e onde o Autor verdadeiro deste folhetim se limita a transcrever o conto e a acrescentar um ponto)

1.

É-me difícil falar de Aline (diz Maria Teresa). Pela razão simples de que falar dela é também falar de mim. E nós falamos sempre de nós por metáforas. Em abstracto. Nunca falamos verdadeiramente dos nossos medos e nunca falamos verdadeiramente dos nossos desejos. Contamos histórias distorcidas pela impossibilidade da transparência. Mentimos mesmo quando supomos estar a dizer a verdade. Falamos de nós pela voz de um outro que nos olha erguendo defesas. Por isso se usa a expressão «dizer a verdade a mentir». Porque por vezes só é possível dizer a verdade quando a mentira deixa de ser um obstáculo a essa busca da verdade objectiva. Posso falar-lhe de Aline, sim. Mas procurando evitar, em nome do rigor possível, a descrição factual e a cronologia. Dois observadores diferentes descrevem um mesmo evento de modo diverso. Veja como os sindicatos e os governos diferem inevitavelmente na contabilidade do número de grevistas; veja a falta de pudor com que uns e outros falam de forma inconciliável de uma mesma realidade. A manipulação dos factos parece fazer parte intrínseca dos processos de descrição – quando não acreditamos deveras nas mentiras que dizemos. O que nos leva a interrogarmo-nos sobre o que é o real e que mentira é essa a que chamamos verdade.

quinta-feira, março 06, 2008

Capítulo V

(Onde Aline é atravessada por uma imprevista melancolia)

Aline imprime em duas folhas os textos que acaba de escrever. Levanta-se da mesa, vai à varanda, fuma um cigarro. Olha os barcos e o rasto de prata que deixam nas águas, as paredes cinzentas dos antigos armazéns, a alameda de lódãos e a estrada com automóveis correndo a caminho de lugar nenhum. A tarde declina. A sombra começa a descer sobre os telhados e as árvores da cidade. A noite trará as sua luzes, os candeeiros das ruas e das praças, os faróis acesos, o néon, as lâmpadas das casas e dos apartamentos a desenhar-se nos rectângulos das janelas; a noite trará os seus silêncios, os seus segredos, a inquietude. Aline entra de novo, senta-se de novo à mesa. Relê os textos que acaba de escrever e compreende, na memória viva dessas imagens dispersas, a impossibilidade da narrativa. Sorri. E invade-a a estranha melancolia de quem recupera uma parte do mundo que julgava ter perdido para sempre.

quarta-feira, março 05, 2008

5.

O Inverno começava com a sementeira do centeio e os carretos de mato. Queimadas as cavadas, em terreno onde mal entrava o arado, assim fertilizada a terra escassa com as cinzas dos torrões, era o tempo de tirar os guiços dos telheiros e as rachas de carvalho – e começava o Inverno. As noites iam arrefecendo por altura das escanadas do milho; insinuavam-se os namoros nos bailes de realejo; principiavam os serões sucessivos. Os homens adormeciam nos escanos ou, em havendo companhia, ficavam sentados à lareira a beber vinho, a jogar à sueca ou a tentar a chiadela na bisca do nove; as mulheres bordavam enxovais, enchiam as rocas de lã, faziam os fiandeiros para os cobertores, fiavam o linho dos lençóis e das colchas, rasgavam as tiras de roupa velha para os liteiros e os tapetes. Vinha então o vento da barra, a geada e o sincelo, a neve: o tempo corria suspenso de fios invisíveis. Os homens tiravam das cortes os estercos velhos, matavam os porcos que penduravam nas traves das adegas por uma soga de cabedal, aricavam os centeios. As mulheres, houvesse ou não houvesse serão, ficavam em casa. No seu pequeno e imenso mundo. A guardar a casa e o mundo e a garantir que os ramos da oliveira protegiam as suas crianças e os seus homens da tempestade e do relâmpago. (E isto quer dizer o quê?)

terça-feira, março 04, 2008

4.

A memória desse encontro, como um segredo por desvendar, ficará perdida nas folhas das árvores e no sobressaltado voo do milhafre que desce da colina em voo picado. Ele sabe (presume saber) que ela não pode desejá-lo como ele a deseja; ela sabe que lhe está guardado um papel e conhece o lugar das antigas marcações no palco em que lhe é dado mover-se. Por isso olha do lado de dentro da casa; guardada pela obscuridade do interior; ainda a defender-se de si mesma. É uma tarde quente de fim de Verão. Ela olha-o através dos vidros da janela e imagina-o a subir a escaleira, a entrar, a aproximar-se, a ficar por um momento a olhá-la; e depois os seus braços fortes a apertá-la contra a parede, a tocá-la com fúria, a erguer-lhe a saia, a despi-la, a deitá-la no chão de soalho da cozinha. Mas ambos acabam por representar os papéis que lhes estão destinados segundo códigos antigos. Haverão ainda de encontrar-se várias vezes nos meses seguintes, trocar algumas frases breves de circunstância. Até que o mundo separará para sempre as suas vidas. E depois será tarde. É quase sempre tarde quando aprendemos tarde que a transgressão faz parte do jogo.