quarta-feira, março 26, 2008

24.

Dona Fernanda (conta Maria Teresa) escolhe um vestido de festa. É como se tudo pudesse começar de novo. Atrás do balcão corrido da Pensão Americana, vagarosamente, arruma os papéis, o livro de registos. Luísa vem de calafetar as janelas do primeiro andar com panos húmidos e a dizer mal do pó levantado pela camioneta da carreira: tem um sorriso rasgado, a saia quase à altura dos joelhos, um decote de furco, o cabelo apanhado num pregador colorido. Atrás do balcão, à espera, Fernanda muda de sítio o livro de registos, as mãos nervosas, o aroma do alecrim a misturar-se no ar. O desconhecido entra. Abre a porta da pensão, pára por instantes, olha em redor, atravessa o átrio, diz «muito bom dia», poisa no chão encerado uma mala de carneira cheia de pó. Dona Fernanda recorda a primeira vez em que se despiu diante de um homem: foi há tantos anos: a luz do seu corpo a iluminar as paredes do quarto; era impossível olhar de frente esse esplendor; um incêndio. Nua, Fernanda. E então o engenheiro das florestas cerrou os olhos, as mãos de súbito pelo corpo todo numa aflição como se uma doença o atormentasse desde o princípio dos tempos. A arder. Gritou, saiu numa corrida, uma dor que se adivinhava à distância no escuro da noite. Ninguém o viu durante o resto da noite. Na manhã seguinte encontraram-no morto, suspenso de uma corda no carvalho da colina da Raia. Enforcado. Dizem que tinha os olhos queimados: a pele arroxeada, escamada, fendida, como se um incêndio houvesse lavrado a noite toda no interior do seu corpo.