quarta-feira, abril 02, 2008

39.

No dia dezassete de Novembro de mil oitocentos e oitenta e nove, pelo fim da manhã, os cães do Pai Ventura começaram a ladrar, correram pelo perímetro do pátio espumando pela boca, acabaram por saltar o portão de ferro, seguiram pela estrada do Noro, rumaram ao lameiro das Águas de Lima, enfiaram-se na Presa do Moinho Velho, desceram ao gralheiro, morreram afogados na correnteza gelada. O engenheiro da floresta, do outro lado da margem, nervoso, assustado, tinha puxado da pistola automática. Lúcio Raposo conta: «os olhos dos bichos parece que luziam. Ficaram por um cibo a espernear na correnteza; depois desapareceram. Ladravam sempre. Debaixo de água, e ladravam. Ainda prendi a arreata da mula à amoreira grande e intentei chegar-me a eles. Mas o engenheiro apontou-me o pistolo e parou-me logo: que justara um carregador, que andasse. Eu estremeci: aquilo os animais só podia ser ao engenheiro que ladrassem. Estive para o mandar à puta que o pariu; mas temi.» O Pai Ventura, numa corrida, chegou à Curva da Amoreira Grande, olhou a corrente das águas. Durante muito tempo ouviria os cães a ladrar: o seu eco, talvez; o som a perder-se e a multiplicar-se na abóbada do vale; a embater na Pedra da Seixa; a regressar à curva do Noro; a perder-se depois na Encosta dos Matos; a regressar ainda, de novo, à linha sinuosa do talvegue. «O Pai Ventura estava como louco. Atravessou a ribeira, chegou encharcado à beira de nós, ficou a olhar-nos demorosamente. A olhar-nos, lembro-me; a olhar sobretudo o engenheiro e a perguntar quem era o cara de caralho que lhe punha assim os cães. Até que voltou à margem, correu ao juzante, passou a tarde à procura dos bichos: no remanso de Onde se Juntam os Rios, na Presa das Tílias, no Voluntário. No dia seguinte ouvia-se ainda o raio dos cães, ladravam ainda, o Pai Ventura quase enlouquecia, tapava as orelhas com ambas as mãos, durante uma semana não podia a gente sair à rua que os não ouvisse, ao correr das margens da ribeira do Fontão, da Pedra da Seixa à Curva do Noro, da Curva do Noro à Encosta dos Matos, do Alto do Barco de Pedra ao caminho dos Campos das Trindades. Diz-se que o Pai Ventura os ouviu durante muitos meses, todos os dias, como se os bichos estivessem ainda à espera que alguém os retirasse das águas ou como se houvesse ainda alguma coisa que era preciso cumprir.»