quinta-feira, maio 22, 2008

11.

João Pequeno dormiu durante quase todo o dia. Acordou e pensou por instantes que estaria fechado numa cela da cadeia civil. Depois olhou na direcção da porta e viu a figura do padrinho recortada contra a luminosidade baça do corredor. Tudo se passou como num sonho em que as imagens se sucedem e sobrepõem até à incoerência cronológica. Quase doze anos depois, quando regressar de novo e olhar o rio, a insólita paisagem de pinheiros elevando-se nas colinas do outro lado do vale, os mesmos caminhos de terra batida, o casario de granito a descobrir-se por entre a neblina do fim de tarde de Fevereiro, João Pequeno terá a sensação estranha da impossibilidade da narrativa; como se os eventos desses dias de Julho de mil novecentos e dezanove tivessem ocorrido fora da sua vida; como se não houvesse coincidência temporal entre a sua vida e o tempo concreto; como se um fluido misturasse as suas memórias e as remetesse a um universo intangível: a figura do padrinho recortada à porta do quarto contra a luminosidade baça do corredor; o rumor dos pequenos fios de água descendo os alcantilados da serra; o odor das flores da urze pisadas pelas patas dos cavalos; a breve luz do quarto minguante a marcar no horizonte as cumeadas onduladas; os descampados onde faziam breves paragens para logo depois atravessarem a galope com o vento no rosto; uma escusa estalagem onde comeram e dormiram algumas horas; a casa de José Ribeiro da Conceição, em Lamego, erguendo-se imensa junto ao Seminário e ao Paço Episcopal; uma mulher que haverá de jurar nunca esquecer durante o resto da vida; a viagem para o Porto; as despedidas; o embarque; e depois o mar oceano, um céu infinito, a tempestade, o calor insuportável, a chegada ao porto de Santos, a turba inverosímil de homens e mulheres a arrastar malas imensas como quem traz do passado todas as amarras de que se pretende libertar.

quarta-feira, maio 21, 2008

10.

O pequeno rumor da água ouvia-se na noite quente de Julho erguendo-se devagar em lâmina fina sobre o muro da presa do Noro. João Pequeno escondeu-se por algum tempo até acreditar que nenhum outro barulho se misturava ao cicio da corrente vagarosa. Tinha bebido muito; correra por entre os arames das vinhas e as árvores do pomar de macieiras; sentia o coração a bater como se o corpo se tivesse rendido ao domínio da eluviação das águas subterrâneas. E depois subiu ao Padrão, passou a Colina do Engenheiro, contornou o alto do Voluntário pelo caminho de saibro, atravessou o rio nas poldras, chegou ao Meio da Aldeia, abriu a cancela do pátio da casa junto à igreja, subiu a escaleira que dá ao terraço, bateu com os nós dos dedos nos vidros da janela. O padrinho de João Pequeno acordou; levantou-se; abriu a porta; olhou o afilhado contra a luz do quarto minguante poisada nas encostas do outro lado do vale; e disse-lhe que descansasse; que dormisse; que alguma solução haveria de topar-se por entre as desordens do mundo.

segunda-feira, maio 19, 2008

9.

O doutor Magalhães sentia-se cansado do mundo; e cansado da avidez mercenária do amigo Américo Matias. A guerra veio ampliar desacertos, injustiças, diferenças: o pão e o açúcar eram bens escassos; e não faltavam os biscoitos ingleses e o champanhe. Américo, em silêncio, no escuro, mexia os cordelinhos da política local e enriquecia a olhos relapsos; o presidente da Comissão Administrativa, tocado irreversivelmente pelo tédio e pela indiferença, deixava seguir as modas. No Echos da Vila, apoiado e motivado pelo doutor Granjo, João Pequeno trazia à superfície a dimensão do embuste; da falcatrua. Arnaldo Adão, o Lindinho, passava-lhe em segredo a cópia dos delitos. João pôs em letra de forma os pontos nos is; demonstrou a condescendente e abjecta corrupção do quotidiano. E, claro, pôs-se a jeito. Foi o que foi. Era preciso arranjar um bode expiatório e limpar de passagem os vestígios dos crimes. O dia vinha a calhar: as confusões na feira com o Vicente de Curros; a tarde de rambóia na taberna da Emília. Armaram-lhe a estrangeirinha. E João Pequeno, de súbito, compreendeu que um laço lhe apertava os pulsos com força; e que o laço haveria de ser puxado em cada um dos seus fios. Por isso, nessa noite de Julho de mil novecentos e dezanove, estando a ser ouvido no posto da Guarda e sentindo os fios a serem puxados, correu na direcção da janela e saltou e correu por entre os troncos das árvores do pomar de macieiras e os arames das vinhas. Nunca haveria de esquecer o silvo metálico dos dois tiros disparados no escuro daquela noite quente e imensa e erguendo-se límpida na abóbada do vale.

sexta-feira, maio 16, 2008

8.

O doutor Magalhães ainda resistiu; que ficava no hotel; que estava de passagem; que não queria ser cúmplice da farsa; que achava deplorável o espectáculo anunciado. Mas acabou por acompanhar o amigo Joaquim Moreira Falcão pelas ruas de Lisboa. Era um dia quente de Junho de mil novecentos e onze e tivera lugar a primeira reunião da Assembleia Nacional Constituinte; o doutor António Granjo, eleito em Maio último, partilhava com Sidónio Pais um lugar de deputado. O cortejo, ao som de filarmónicas, passava pelo Arsenal; ouvia-se A Portuguesa; havia girândolas de foguetes; desfilavam os corpos do exército; distribuíam-se folhetos com a proclamação da República; e o povo, nas ruas, nas janelas das casas, aos milhares, aclamava o desfile. O que acontecera entretanto? A República elege um Presidente de sangue azul (vigésimo quinto neto de um duque de França, neto da segunda neta de D. Fernando de Castela e com ascendência em Hugo Capeto, conde de Paris e de Orleães); o país é arrastado para a guerra e os seus jovens são arrastados para a morte nas margens de um rio perdido na Flandres; António Granjo escreve versos e conspira contra Sidónio Pais; a desordem cresce nas ruas e nas instituições; Sidónio Pais é assassinado; alguns heróis, como Paiva Couceiro, tentam em vão repor a velha ordem e restaurar a Pátria; e hoje, nesta tarde fria de princípios de mil novecentos e dezanove, António Granjo entra com João Pequeno na Pensão Americana, puxando as golas da gabardine inglesa comprada no Pires d' Almeida, cheio ainda da glória de ter participado em Vila Real no confronto com as tropas do major Alberto Margaride e feliz por poder anunciar que a Constituição de mil novecentos e onze regressou enfim à sua plena vigência.

quinta-feira, maio 15, 2008

7.

A doença chegava-lhe. O doutor Magalhães vinha à varanda, em havendo sol, sentava-se na cadeirinha de lona, arregaçava as mangas da camisa em dobras simétricas, puxava as calças acima dos joelhos, enfiava os pés no enxofre da água das caldas santas. Pouco o preocupavam já monárquicos ou republicanos, democratas ou evolucionistas; pouco o preocupava o rodar de um mundo que parecia ter perdido os seus eixos para sempre; pouco o preocupava o ruir das paredes de uma velha ordem que se resumia em manter as coisas antigas nos seus devidos lugares. Por isso, por esses primeiros dias do ano de mil novecentos e dezanove, quando o doutor António Granjo, mais uma vez, entrou na Pensão Americana para falar de um mundo novo, sorriu apenas entre a melancolia e o cansaço. E, estirando-se na cadeirinha de lona, pensou nas ironias e nos desacertos do mundo.
6.

«Não há crimes de opinião; o conceito é absurdo», dizia o advogado. João Pequeno, extasiado, ouvia-o falar sobre um tempo em que não seria mais aceitável impor regras ou limitações aos discursos. «A liberdade começa pelo direito de exprimir opiniões em público sem restrições de ordem moral ou política». O doutor Granjo vinha à Vila, deixava o Tribunal e rumava à Pensão Americana a beber um palhete do Crasto. Dona Fernanda, em vendo-o chegar, fazia um sinal e Luísa descia à adega, cortava as fatias de presunto e desenterrava uma garrafa do chão de terra; trazia-a cuidadosamente para que não bulisse; para que o pé não levantasse do fundo; para que o cristal do vinho, olhado à transparência, não reflectisse senão a luz e a água das encostas viradas ao nascente. O doutor Magalhães, da varanda, via-o a atravessar o largo na companhia de João Pequeno. E o que sentia era apenas cansaço; tédio; melancolia.

quinta-feira, maio 08, 2008

5.

João Pequeno não haveria de esquecer nunca a desolação desse lugar varrido pela tormenta. Era uma criança. Mas a imagem do desastre ficou gravada no imperscrutável lugar da memória que guarda os momentos e os lugares da infância de que nunca nos livramos durante uma vida: um cântaro com água, o arame das vinhas, os pátios, um caminho de terra subindo às colinas por entre bosques de bétulas, a aparição de um corpo nu, a página de um livro, as folhas dos negrilhos, a água das presas, um relâmpago no mês de Novembro iluminando a noite para sempre. Às vezes damos connosco a dizer «é incrível como o tempo passa». O que nos surpreende não é o facto de estarmos mais velhos; não é a distância a que ficaram as coisas antigas. O que nos surpreende é a inexistência de uma fita com marcas regulares ou de um pêndulo a definir por igual a duração de cada um dos dias, a duração de cada um dos anos das nossas vidas. É como se o tempo nos fosse devolvido pela reverberação de sentimentos extremos; é como se a sua espiral tivesse descontinuidades ou sobreposições; é como se a memória do que vivemos não guardasse senão alguns momentos e algumas imagens: e o resto fosse o desperdício de estarmos vivos. Numa madrugada de Julho de mil novecentos e dezanove, ainda escuro, João Pequeno regressou à Aldeia; atravessou o rio nas poldras, subiu a escaleira que dá para o terraço de uma casa junto à igreja e bateu com os nós dos dedos nos vidros da janela. Que memória da sua vida tem João Pequeno nesse preciso instante? Algumas imagens da infância; o ano dos desastres, o calor, a chuva, o vento, um negrume feito de palhas e poeiras; a ida para a Vila e a nova casa no Alto da Ribeira; um bosque; os textos escritos no quinzenário local contra as trapalhadas financeiras da Comissão Administrativa; uma noite clandestina num quarto da Pensão Americana; alguns momentos em que a amizade e o mundo pareciam sobrepor-se; e os dois tiros nervosos disparados no escuro no momento em que fugira do posto da Guarda por entre os arames das vinhas e as árvores do pomar de macieiras.

terça-feira, maio 06, 2008

4.

Não havia memória de terem assim secado as nascentes. Os dias de calor sucediam-se; um calor insuportável que diluía os contornos dos objectos e que parecia erguer-se em espadana sobre os arbustos e o chão ressequido onde as cobras de escada largavam as suas peles claras da muda e desenhavam uma linha ondulada no saibro. Os finais de Agosto deveriam já ter trazido as brisas do crepúsculo e o frio nocturno; mas quase não se podia sair à rua; dormia-se com as janelas abertas. O braseiro durou todo o mês de Setembro e entrou em Outubro; até o rio deixar de correr e o leito do estio se reduzir a minúsculos charcos verdes de água e limos no fundo das presas. Não se regaram os milhos; secaram as pastagens das águas de lima; acabou-se a provisão de forragens; e os bagos das uvas crestaram numa mistura de lume e açúcar. E foi então que um vento desusado se anunciou primeiro nas copas das árvores da encosta e depois atravessou as ruas da Aldeia e ergueu no ar um negrume feito de palhas e poeiras; semanas a fio. E então em Dezembro, nos primeiros dias de Dezembro, o céu ficou carregado de nuvens; nuvens densas, escuras, que vinham do nascente, sendo certo que as nuvens do Inverno nunca chegavam pela banda do nascente. E ficaram assim; suspensas como uma ameaça de tormenta e um castigo. Até que começou a chover; na noite da passagem do ano; e choveu durante três meses. No dia primeiro de Março, quando o céu finalmente se abriu de novo sem uma nuvem, a Aldeia estava transformada num deserto.

sexta-feira, maio 02, 2008

3.

Leonor nasceu na casa a jusante da Ponte de Arame no dia seis de Junho de mil oitocentos e setenta. A casa tinha sido erguida alguns anos antes; oito anos mais tarde ficaria entregue ao abandono; até que foi arranjada para guardar um segredo e para que Leonor desse um filho à luz e ao mundo. A memória permanece dentro das casas durante algum tempo; num baixo-relevo dos caibros esculpido a navalha, nas pedras das lareiras, nos fornos de lenha, nos alpendres, nas prensas dos lagares, nos móveis velhos, nos beirados derruídos, num traço indelével no pavimento, nas manchas da parede de cal onde se penduraram retratos dos dias felizes de Verão. Mas depois vem a ruína e a tempestade; a chuva e o gelo, a luz, o vento, a sombra. Na casa a jusante da Ponte de Arame, quando a família de Américo Fontes a deixou e rumou à Vila à procura de um novo destino, a hera e a vinha-virgem subiram as empenas e as colunas de pedra dos pátios, os conchelos invadiram os muros, as giestas e os silvedos acompanharam as bermas dos caminhos e viam-se à distância, os dentes-de-leão misturaram-se à dedaleira, às moitas de parietária, à avoadinha, às urtigas, à serradela, ao trevo, aos malmequeres. A casa ficou assim, vazia, abandonada até esse dia de meados de Maio de mil novecentos e sessenta e sete em que o pai de Aline chegou e cortou as ervas, arroteou o pequeno vale confinante, despedregou a encosta, semeou centeio e um milho de regadio, fez uma horta, reconstruiu paredes, construiu anexos. Mas isso foi muito tempo depois. No dia seis de Junho de mil oitocentos e noventa e um, nessa manhã em que Leonor morreu com um sorriso enigmático nos lábios, sem que se lhe ouvisse um lamento, o soalho estava encerado e havia cortinas nas janelas e lírios numa jarra alta; nessa mesma manhã em que João, recém-nascido, foi levado aos cuidados de Lúcia e Manuel Pequeno, à casa do largo do meio da Aldeia contígua ao tanque das águas de nascente onde se enchiam os cântaros.