segunda-feira, junho 30, 2008

17.

Quando chegou ao porto de Santos, numa tarde estranhamente quente de princípios de Agosto de mil novecentos e dezanove, João Pequeno não fez a tradicional via-sacra dos imigrantes: não haveria de ficar na hospedaria do bairro do Brás entre o odor a azedo e a algaraviada ruidosa de espanhol e italiano; não haveria de sujeitar-se ao desconforto dos quartos minúsculos e apinhados de gente desconhecida; não haveria de sujeitar-se ao ágio que a miséria parece atrair como uma lâmpada acesa por entre o escuro da noite; não haveria de rumar às fazendas ou às fábricas e procurar depois, aos poucos, libertar-se de uma espécie de sevícia que tirava aos homens e às mulheres os fios de sonho e a dignidade que traziam no convés dos navios, pouco tempo antes, olhando a linha do horizonte. João Pequeno chegou ao porto de Santos e a família de José Ribeiro da Conceição esperava-o como se a amizade do padrinho com o velho empresário de Lamego revertesse de um juramento de sangue que assim, neste cuidado, acabava por cumprir-se. João, alguns dias depois, trabalhava já nos escritórios da empresa de importação; e, passado pouco mais que um ano, era o responsável pela gestão da Companhia de Transportes Luzitana. São Paulo, nos anos vinte, é uma metrópole com mais de meio milhão de habitantes; a vida oscila entre a crise do café e a expansão da indústria, a miséria e a riqueza, a escassez e as crescentes oportunidades de negócio. A Companhia Luzitana estava no prato certo da balança; não apenas lidera o sector dos transportes: é uma referência de sucesso empresarial. João Pequeno conhece a glória, vive num palácio da rua Barão de Itapetininga, frequenta o Teatro Municipal, é desejado pelas mulheres, convive com os artistas do movimento modernista, patrocina a Semana de Arte Moderna. Assim corria, sem graves variações de corrente, a água por debaixo das pontes. Mas essas mesmas águas, em mil novecentos e trinta, pareciam de súbito sobressaltar-se e ameaçar sair das margens. As dificuldades começaram com a crise da bolsa de valores de Nova Iorque, um ano antes; e, de súbito, ganhavam força com a revolta armada que acabava de levar à deposição de Washington Luís. Entretanto, João Pequeno apostou tudo em Júlio Prestes para a presidência da República; Júlio Prestes venceu as eleições; mas o golpe de estado de três de Outubro de mil novecentos e trinta levou-o ao exílio; Getúlio Vargas toma o poder; era o fim da República Velha e um duro golpe para os negócios das empresas da família Ribeiro da Conceição. E foi então, em Janeiro de mil novecentos e trinta e um, que Catarina Ribeiro da Conceição chegou a São Paulo; não era propriamente uma jovem: João Pequeno tinha-a visto em Lamego, quase doze anos antes, na casa junto ao Seminário e ao Paço Episcopal. Se o amor não fosse chamado a estas coisas, o mais certo é que haveriam todos de ficar felizes com a providencial aliança. Catarina, no dia seguinte, seria apresentada a Paolo Piscicelli, seu prometido noivo. E a família Piscicelli era ainda a mais poderosa de São Paulo: o fim da República Velha não bulira com os alicerces do seu empório; e os novos tempos, com Getúlio Vargas, anunciavam um ciclo de sucessos empresariais. O casamento, se não era movido pela conveniência, não se podia dizer que a prejudicasse. O mal é que João Pequeno tinha visto Catarina, por instantes, doze anos antes, em Lamego, na casa junto ao Seminário e ao Paço Episcopal, e jurara não mais esquecê-la durante o resto da vida.

quinta-feira, junho 26, 2008

16.

O tempo passou a correr. É quase sempre assim quando uma imagem antiga bruscamente nos é devolvida no alarme da sua irremediável ausência. A caminho do Brasil, a meio do mar oceano, sob as nuvens movendo-se ou entre as vagas erguidas pelo vento, João Pequeno foi deixando que a memória do passado se diluísse como a água que temos nas mãos em concha e vemos escorrer por entre os dedos. Ao chegar ao porto de Santos, ao respirar com dificuldade nessa tarde distante de calor insuportável por entre a turba de homens e mulheres arrastando malas vagarosas, João compreendeu que só o futuro existia; que um mundo novo, admirável, se abria diante de si; que o passado não era mais que uma abstracção sem densidade nem contornos. O padrinho haveria de morrer na tristeza desse silêncio; o pai haveria de perder o rumo e passar os dias à procura de um sinal que nem a camioneta da carreira nem o posto dos correios acabaram por lhe trazer; Serapião Afonso, primeiro fechado na cadeia civil, depois fechado em si mesmo no labirinto do ódio, deu-o como morto; a Vila esqueceu-o; os anos passaram; longe, fora do mundo que vivia, sucederam-se os dias de vento, a neve e o sincelo, a poeira levantada dos caminhos num fim de tarde de Verão. Só o futuro importava. E no entanto, imprevistamente, quase doze anos depois de chegar ao porto de Santos, algumas imagens antigas foram-lhe devolvidas no alarme da sua irremediável ausência: uma faca de cortar o pão; uma mesa de castanho com uma toalha de linho em dia festivo; um cântaro com água; um negrilho erguendo-se na encosta a caminho do Voluntário. O tempo, entretanto, passara a correr. Ou talvez não: não tão depressa que não deixasse a água circular, sucessiva, por debaixo das pontes.

domingo, junho 15, 2008

15.

O escuro da taberna contrastava com o calor insuportável; um odor a óleo e a fermentação parecia ficar no ar em camadas espessas. João gostava de misturar-se a esta gente que trazia em si, a um tempo, as marcas da ruína e da exaltação; os sonhos ainda agarrados ao corpo mesmo quando a cinza definitivamente os trespassara. E então, numa noite de Outubro de mil novecentos e vinte e um, ouviu alguém a falar de um lugar onde os rios eram tão azuis como nos mapas das escolas; e os freixos desenhavam nas suas margens uma linha sinuosa de sombra iluminada por dentro. Não o reconheceu logo: Damásio Martins tinha envelhecido muito. E João Pequeno ficou por algum tempo interdito: Carminha, D. Carmo, recebia na Vila, todos os meses, uma renda da suposta árvore das patacas que lhe permitia comprar vestidos de Lisboa no Comércio Central; com o que lhe sobrava das remessas, Damásio Martins teria o suficiente para remendar a roupa, beber copos de cachaça e sonhar com uma casa nas margens do Terva, na presa das Tílias, entre a encosta de vidoeiros e o lameiro das águas sesserigas.
14.

São Paulo era uma cidade de contrastes. A guerra trouxe a riqueza e o progresso; e, como sempre que a riqueza cresce, a miséria foi ocupando espaços e erguendo muros. João Pequeno vivia a intensidade das contradições do seu tempo. Perdia-se em tabernas escusas onde os operários fabris adormeciam nas mesas a beber cachaça e a contar as sobras de salários miseráveis; frequentava os salões de dança e assistia às corridas de automóveis; fazia amigos nas periferias onde a gripe espanhola dizimara crianças e velhos; passeava nas alamedas do Palácio das Indústrias ou quedava-se, fascinado, a ver partidas de futebol ou exibições de voo de aeroplanos coloridos. Entretanto, dedicava-se a fundo aos negócios e subia na hierarquia da empresa de importação de José Ribeiro da Conceição. O sucesso acompanhava de perto a sua dedicação, a sua entrega, a sua inteligência, os seus dotes inesperados de liderança. Depressa deixa a empresa de importação e, dividido entre os escritórios de Santos e S. Paulo, José Ribeiro entrega-lhe as responsabilidades de gestão da Companhia de Transportes Luzitana. Em pouco tempo a Companhia lidera o sector da navegação; e João Pequeno viaja nos vapores que cruzam os mares, que ligam o Norte do Brasil a Buenos Aires, as penínsulas e os continentes do vasto e admirável mundo.
13.

Algumas leituras davam-lhe a dimensão das cidades longínquas e dos continentes que se erguiam em plataformas sobre o mar e se perdiam na distância das florestas e dos imensos rios. Mas o mundo de João Pequeno não passara nunca as fronteiras da bacia hidrográfica do Terva; tudo o mais, além das cumeadas da Seixa, revertia de uma irrealidade feita de sonho e abstracção. E o mundo, no entanto, é vasto e admirável: com a água dos mares oceanos, as cordilheiras e os seus declives, as ilhas e as penínsulas; com as montanhas e os rios, a chuva e o vento; com a tempestade e o remanso, as manhãs de sincelo ou os fins de tarde iluminados por um lume vagaroso; com a rede infinita dos seus caminhos e veredas, os bosques e as árvores das avenidas, as casas, as pontes suspensas entre duas margens, as colinas, os palácios, as arcadas das praças, os navios, as estrelas, as mulheres, as nuvens, as marés, o crepúsculo. João Pequeno vivia num vórtice; um mundo novo, admirável, maior que o destino dos homens, abria-se diante de si. E era como se esse mundo admirável, o burburinho dos automóveis e das fábricas, os edifícios e os palácios, as avenidas e os jardins, o transportassem a uma dimensão de milagre.

sexta-feira, junho 06, 2008

12.

João ouve o motor, ao longe, do Bugatti, e imagina um tempo em que não haverá tempo; um tempo em que tudo ficará dependente do despotismo do tempo: das suas amarras, das suas teias densas, dos seus elos e dos seus vínculos, das suas cadeias sucessivas. A velocidade, então, marcará o quotidiano; e as opções do quotidiano resultarão da ponderação de variáveis que se sobrepõem, acumulam, uma camada e depois outra, num processo em que a diacronia deixa de fazer sentido; um tempo em que a falta de tempo justificará tudo: a erosão do amor, os intervalos longos na publicação dos capítulos dos folhetins, as ausências, a deserção, o esquecimento. João Pequeno ouve o ruído fascinante do motor de quatro cilindros do Bugatti e imagina um tempo em que o relógio se sobrepõe ao calendário e tudo se vive ao segundo. Até que o automóvel aparece na recta final; acabou de fazer a última curva da pista: azul, tubular, com o motor protegido pela belíssima oval dianteira, com as onduladas curvas laterais a semelhar uma onda, veloz, admirável, deslizando entre o pavimento e uma nuvem, quase em voo, quase suspenso na vertigem de correr assim disparado em direcção ao futuro.