domingo, julho 06, 2008

19.

No início dos anos vinte, em São Paulo, a rua pertencia aos pobres e às putas. A riqueza do café fazia-se no campo, nas fazendas, num tempo antigo de terreiros e tulhas, de casas-grandes e senzalas, de terraços e alpendres, de casas de escrivães e arreadores, de tropeiros e marceneiros, de paióis e quartos de selas, de enfermeiros, dos anexos de escravos, de engenhos e alambiques. Mas depois os senhores da terra rumaram à cidade com suas cédulas e havia que marcar diferenças, distâncias. Em São Paulo, por esse tempo, às mulheres das famílias ricas ficou-lhes destinada a casa e a gestão de cozinhas e eventos sociais, a redacção de papelinhos de convite e a discussão dos alinhamentos das sebes dos jardins. O espaço público foi sendo ganho, aos poucos, nas aulas de piano, no ensino, no estudo do direito ou da medicina; e, finalmente, pela frequência das salas de cinema, dos restaurantes, das alamedas e dos parques arborizados que o urbanismo levava aos bairros residenciais de palacetes e moradias com salões de pé direito duplo. As mulheres da sociedade iam ganhando terreno. E, de súbito, depois das alamedas e dos foiyeres dos teatros, o amor. As mulheres, ganho o espaço público, avançavam para o espaço afectivo. E acabaram por regressar à casa sem deixar a rua: exigindo a si mesmas um lugar de liberdade e escolha, um lugar sem grades onde as remetia, no tempo antigo, o preconceito e a impossibilidade de tocar os fios do desejo, da pele, do amor. Quando Catarina, à noite, em Janeiro de mil novecentos e trinta e um, passeou nas ruas de São Paulo o seu vestido de um amarelo claro, os seus colares excessivos, a sua pelerine de lã, era já vigente o entendimento de que a beleza e o desejo não deveriam fechar-se à chave entre paredes altas. Os casamentos por interesse comercial andavam arredados da moda. A boina de Catarina Ribeiro da Conceição, com os seus pormenores de flores e pétalas onde poisavam aves em ramos finos, e sobretudo o que representava, estava desajustada do seu tempo. João Pequeno, paciente, explicou-lhe isso mesmo; que o casamento exige o amor. E, de caminho, estando Paolo Piscicelli ausente por razão de negócios, levou-a pelas ruas do Ipiranga e acabaram a ver uma fita no Cine Theatro Brazil. Trocaram as mãos por um breve momento. E ela recordou-se do sobressalto dessa noite de Lamego, muitos anos antes, em que um moço desajeitado a olhou como se o mundo estivesse a começar.