quinta-feira, setembro 25, 2008

15.

Para onde vão os dias que passam? Que lugar os acolhe ou suspende nos seus múltiplos fios? O que nos pertence ou se perde irremediavelmente no tempo que já não é? Onde ficam as nuvens pretéritas e o vento e a chuva e as corridas das crianças a descer e a subir os atalhos das florestas? O que une ou separa os acontecimentos do passado e a memória que guardamos deles? E se não houvesse mais que o tempo presente? E se não houvesse passado nem futuro? E se a vida toda não fosse senão este momento irrepetível de nos sentirmos vivos em melancolia, intemporalidade e tumulto?

14.

Luísa ficou durante o fim de tarde e toda a noite à cabeceira da cama; a olhar o rosto adormecido de João Pequeno. Chamado a correr quando o seu corpo tombou na terra batida do Largo, a dois metros da porta de entrada da Pensão Americana, o doutor Nogueira recomendou «sopas e descanso». Que ele o que estaria era «terrivelmente cansado». E, filósofo, enigmático, teatral, como se recitasse o excerto de um poema ou de um romance, acrescentou: «cansado, talvez, de não se dissolver continuamente em cada instante da vida, ou das pessoas, ou de si mesmo, ou de tudo». Sopas e descanso, portanto. Por isso o levaram a um quarto e ela ficou assim, durante toda a noite, à cabeceira da cama; a olhar o seu rosto adormecido e a ver reflectir-se nele uma inusitada melancolia da passagem do tempo. Até que, de súbito, algo em Luísa vibrou como uma revelação: a revelação do medo e da ausência; da impossibilidade dos regressos; da inevitabilidade do adeus. A manhã entrava devagar na janela do quarto quando João Pequeno acordou. E era sobretudo melancolia o que o olhar de um parecia espelhar no olhar do outro.

quinta-feira, setembro 18, 2008

13.

Luísa sabe como os dias e os anos correm devagar por entre os montes; subindo encostas a pique, descendo as vertentes da umbria, atravessando as poldras das enchentes, correndo em caminhos de lama ou na poeira muito fina do saibro dos meses de Julho. Como se tudo fosse tão antigo que parecesse recente; como se a cronologia não fizesse sentido; como se não houvesse tempo na passagem do tempo; como se cada aniversário ou evocação não devolvessem senão o eco do que um dia já foram na memória dos seus risos e das suas lágrimas. Até ao momento em que pressentimos ou compreendemos que tudo já foi. E a lentidão se desenha de novo nos relógios e nas ruas e nos largos e nos pátios e nos corredores das casas.

12.

São poucas as coisas que regressam do passado quando sentimos que tudo seria pouco para que nos pudéssemos de novo erguer e olhar em frente: a memória de alguém que nos abraçasse ou nos tocasse no ombro e nos falasse com uma voz que saberíamos vir necessariamente do fundo do tempo; a memória de um lugar, de um objecto, de uma noite em que os amigos juraram que haveria sempre uma noite assim. E o desejo: isso que, livrando-nos do amor, nos reconduz ao amor.

sábado, setembro 13, 2008

11.

«Sei muito bem o que quero e para onde vou.» Uma tontura, uma vertigem. Um exemplar do Diário de Notícias aberto nas páginas centrais. O Rapto de Europa. A sublevação pela arte. «A incorrecção que o faz mover.» O mundo. Um mundo novo, um homem novo. Na tarde fria de Março. Lá fora não havia uma aragem, não se ouvia o rumor das folhas das árvores ou dos seus ramos suspensos e recortados contra a encosta. «No mais, que o País estude, represente, reclame, discuta, mas que obedeça quando chegar à altura de mandar.» Uma tontura. Uma forte dor de cabeça. A náusea. «Não acha você, João, que este Professor Salazar?» O passado e o presente. Uma voz e outra, partidas, regressos, viagens, a vertigem do tempo. Sentado na mesa da Pensão Americana. Quem fala? Fernando Lalice? Di Cavalcanti? A sublevação. O respeitinho. Obedecer. Subverter. Regressado de longe a um lugar que não existe. Na tarde fria de Março de mil novecentos e trinta e um. «Sente-se bem?» Uma ligeira tontura. Os quatro companheiros de mesa mergulhados em irrealidade e abstracção. Pede desculpa. Olha mais uma vez a reprodução do Rapto de Europa. Pensa em Luísa. Mas Luísa não aparece na sala. João levanta-se. Sai. É já noite cerrada quando chega à rua. Uma tontura. O Professor de Finanças parece que vai salvar a Pátria.

10.

João Pequeno tinha conhecido Mário de Andrade em Novembro de mil novecentos e vinte e um: pouco mais de dois anos depois de deixar a Vila, de atravessar o imenso mar oceano, de chegar ao porto de Santos, de passar enfim a viver em S. Paulo. João ficou fascinado com o poeta e com o grupo de amigos; e rendido a essa ideia de provocação permanente, de subversão cultural como princípio de insubordinação ao mundo. Não mais deixou de acompanhá-los sempre que o tempo lhe permitia o abandono das contas e das estratégias de expansão do negócio. E foi assim, tantos anos depois de ver pela primeira vez a gravura pendurada na parede do fundo da Pensão Americana, que João Pequeno se confrontou de novo com uma reprodução do Rapto de Europa. Um jovem pintor falava com entusiasmo do verdadeiro precursor do modernismo e de toda a arte moderna e espalhava estampas numa mesa. «Atenção: estamos em meados do século XVI; e no entanto veja-se como Ticiano se libertou da tirania da linha, da precisa delimitação das formas; reparem nas pinceladas largas e livres; imaginem as marcas dos seus dedos espalhando a tinta, pressionando a tela; e compreendam como a verdadeira arte não imita a perfeição do mundo mas lhe acrescenta a incorrecção que o faz mover na direcção do futuro.» O espaço e o tempo misturam-se. Uma tontura. O eco das palavras antigas de Di Cavalcanti. O cérebro a estalar. Um regresso. João Pequeno recorda: por várias vezes dona Fernanda fizera tenção de retirar a gravura da parede. As manas Custódias, por exemplo, não se coibiam de falar em escândalo. E o padre Pedro chegou a pedir-lhe («não por ele, que sabia o que era a arte») que substituísse o painel por uma paisagem marinha ou uma natureza morta. João Pequeno recorda: os rapazes procuravam uma distracção para atravessar a porta e ficar assim, extasiados, a olhar o seio e as pernas opulentas da mulher deitada no dorso de um touro branco que parecia caminhar à flor das águas; e os comentários sobre o «pedaço de mulher» eram recorrentes. O quadro, nesse tempo, era isso: anjinhos a abençoar com setas de Cupido a mulher quase nua que lhes acenava com um lenço vermelho enquanto fugia no dorso de um touro.

9.

João sentou-se. O mais jovem do grupo falava sobre as drásticas alterações climáticas dos últimos anos e para o efeito «que só poderá ser nefasto» do fumo das fábricas das cidades sobre a meteorologia: «antigamente havia o Verão e o Inverno; agora anda tudo misturado e já ninguém percebe a ponta dum corno». Mas a sua atenção, aos poucos, desviava-se da mesa. A velha reprodução do Rapto de Europa continuava no mesmo lugar de sempre; pendurada na parede do fundo. E João sentia-se amarrado às figuras do quadro. A estremecer por dentro. Porque a gravura era a mesma e era agora completamente diferente. E nessa diferença se marcava também, decisiva, imperativa, a distância de si às coisas a que julgava regressar.



quinta-feira, setembro 11, 2008

8.

Luísa entrou pela porta do balcão e saiu de novo, apressada, ausente, num mesmo e quase imperceptível movimento. João ficou a olhá-la, e depois a olhar o espaço vazio como se a presença de Luísa ainda o enchesse de tudo o que a sua memória recordava desse corpo. E assim ficou ainda durante algum tempo; até regressar ao silêncio a que os quatro homens sentados na mesa do canto se haviam remetido. E então virou-se desajeitadamente, disse «boa tarde», esboçou um sorriso que percebeu ter-lhe saído frio e dissimulado. Uma luz baça entrava pelo vidro da janela rasgada ao nascente. Lá fora não havia uma aragem, não se ouvia o rumor das folhas das árvores ou dos seus ramos suspensos e recortados contra a encosta; um estranho remanso invadia as ruas, o largo, poisava nos telhados das casas. Como se o mundo estivesse a começar; ou como se começasse a fechar-se, vagarosamente, sobre si mesmo. João Pequeno continuava de pé e sentia-se estrangeiro do mundo que lhe era devolvido em irrealidade e abstracção. E então, sem que a memória de um tempo antigo vibrasse em si verdadeiramente, reconheceu Fernando Lalice. E também o velho amigo o olhou e o reconheceu sem surpresa nem sobressalto; e apenas se ergueu em cortesia e o convidou a sentar-se. «Ora então de regresso, João?». Que sim. Mas João Pequeno pressentia já que o mundo se começava a fechar sobre si mesmo, descendo as suas sombras sobre as ruas e as casas, sobre as árvores e o largo, sobre os rostos irreais dos companheiros de mesa.

domingo, setembro 07, 2008

7.

Na sala da Pensão Americana tinha mudado tudo e ficado tudo na mesma. Fernanda, dona Fernanda, casara com o professor com ar de maricas que chegou à Vila na camioneta da carreira numa manhã de Setembro de mil novecentos e vinte e um e geria o negócio à distância por cartas remetidas do Porto e cada vez mais intervaladas visitas à Vila. Uma reprodução do Rapto de Europa pendurada na parede do fundo, o aparador em madeira de carvalho correndo sob a janela larga do nascente, o louceiro com vidrinhos biselados, as mesas com toalhas de quadrados vermelhos e azuis: João Pequeno entrou e ficou assim rendido à imagem dum tempo devolvido no absurdo da sua impossibilidade. E, de súbito, Luísa. Luísa entrando pela porta do balcão sem tocar o chão da sala da Pensão Americana e a breve luz de Março a atravessar a janela e a poisar nos seus cabelos soltos sobre os ombros.


terça-feira, setembro 02, 2008

6.

Carlos, o Alferes, mandou dizer que estava cansado, indisposto; que pedia desculpa; que João voltasse mais tarde; que teria todo o gosto em recebê-lo, em abraçá-lo, em recordar com ele as memórias comuns dos velhos tempos de rambóia. Carlos Magalhães, tantos anos depois, continuava fechado no quarto da Casa do Largo; deitado na cama de ferro a olhar pela janela a Encosta dos Matos, os pinheiros erguendo-se numa paisagem nova, os milhafres no seu voo circular planando contra o céu cinzento, contra o céu azul, contra o céu de chumbo, contra o céu distante dos caminhos de terra batida que subiam a Presa das Tílias, Onde Se Juntam Os Rios, o Noro, o Moinho do Cubo. Carlos, o Alferes, não se livraria nunca do pesadelo desses dias antigos de Abril de mil novecentos e dezoito. Ninguém vence uma guerra; ninguém a perde. Uma guerra não se extingue com o fim dos combates, com a rendição ou o erguer das bandeiras vitoriosas, com as negociações, os acordos de paz, os relatórios dos conflitos. Carlos, o Alferes, não se livraria nunca da memória desses dias entre a lama e a névoa, o frio e a humidade, as ratazanas e a sarna, os piolhos e o gás mostarda, as lágrimas e o riso de quem perdera já os seus nomes verdadeiros; o fosgénio a lembrar, na irrealidade do mundo, nas margens de um rio perdido no fim do mundo, o odor do feno cortado nos campos da infância; a roupa, dia após dia, colada ao corpo, entranhada no corpo, misturada no corpo. Há muito que o poder político abandonara os soldados ao acaso e à ruína; deposto Afonso Costa, Sidónio Pais tinha mais que fazer. Mas no dia oito de Abril, finalmente, chegavam as ordens de retirada; os soldados baixavam defesas; deixavam a linha da frente; comemoravam. E foi precisamente nessa noite, de oito para nove de Abril, que começou por se ouvir um ou outro disparo disperso; cortando a sombra devagar. Até que, de súbito, o céu ficou claro, iluminado, fosforescente. As barragens de artilharia alemã, primeiro; madrugada dentro; até que o princípio da manhã começou a deixar a descoberto os corpos amontoados, os restos, os rostos fechados em si mesmos como se nunca uma única luz os tivesse tocado ou adormecido devagar. Entre a deserção e a resistência, no flanco esquerdo das tropas, onde as forças portuguesas e britânicas partilhavam linhas dianteiras, Carlos Magalhães manteve-se no seu posto, com os seus homens, enquanto a artilharia alemã parecia varrer por inteiro as trincheiras e os campos abertos e um silêncio inverosímil presidia a tudo. Era já manhã; a névoa poisada no imenso vale; e as metralhadoras MG-08 corriam ainda as linhas de avanço; e os soldados começavam a disparar às cegas, em desespero, as suas espingardas Lee-Enfield; e Carlos, o Alferes, continuava de roda dos seus poucos homens, gritando, ouvindo o eco da sua voz devolvido pela distância e por esse silêncio que presidia a tudo. Ninguém vence uma guerra; ninguém perde uma guerra. Carlos, o Alferes, não se livraria nunca dessa irrealidade, dessa sombra espessa, desse silêncio feito de lágrimas e alarido, de ausência e deserção de tudo. Uma guerra continua depois da crónica dos conflitos. Carlos, talvez por isso mesmo, mandou dizer que estava cansado, indisposto; e que João Pequeno regressasse mais tarde, que gostaria imenso de recebê-lo, abraçá-lo, recordar as memórias comuns dos tempos de rambóia.