sexta-feira, outubro 31, 2008

3.

Eu disse uma nuvem poisada nos telhados; talvez fosse mais correcto dizer o silêncio escondido no fundo da terra. Porque é esse pressentido rumor que faz deslocar as placas dos pequenos lugares da província; porque é esse alvoroço sem rosto que se mistura à água das nascentes para sentirmos, depois de tocá-la e recolhê-la com as mãos em concha, a perturbação da passagem do tempo; porque é o silêncio que traz o esquecimento e a memória do que esquecemos assim. 

quarta-feira, outubro 22, 2008

2.

Luísa começou por não dar ouvidos ao mundo. Como se João apenas demorasse a chegar ao almoço e em breve estivessem juntos a mostrar ao povo e à sua língua bífida que o amor se sobrepõe a tudo. E haveriam então de falar do futuro e da luz da primavera a entrar nas copas e a poisar nas folhas do ano dos negrilhos dos quintais. Mas depressa uma nuvem pareceu ficar poisada sobre os telhados da Pensão Americana e o jardim dos Correios e as ruas quando descia ou subia as ruas da Vila. E o azul do céu, aos poucos, distanciava-se; e não era já distante: diluía-se no acinzentado das manhãs e das tardes de Maio e Junho até desaparecer e ser a memória vaga de um tempo que, tudo indicava, não poderia regressar mais aos seus nomes. 

quarta-feira, outubro 15, 2008

Capítulo XII

(Onde Maria Teresa continua a puxar os fios da história, já que mais ninguém, começando pelo A., parece interessado em fazê-lo)

1.

Ao povo não se lhe entaramelou a língua na boca; a complexidade do caso só parece tê-la acirrado. As estranhas circunstâncias do desaparecimento de João e Adriano, de resto, assumiam carácter secundário; porque em havendo sexo à mistura, ou a suspeita dele, é tiro e queda. A isso, desde sempre, a língua do povo não renuncia. E de Luísa, como imagina, o menos que se disse na Vila foram coisas do género «ai esta a mim nunca me enganou a filha da puta». 

domingo, outubro 12, 2008

31.

Choveu durante dias a fio. As ribeiras galgaram as margens, as águas correram no vale, subiram as linhas das encostas. Nunca mais se soube de João Pequeno; nem de Américo Fontes. Até que chegou à Vila a notícia de um carro encalhado nas pedras a seguir ao gralheiro da Presa do Lameiro Grande. Só podia ser que tivesse caído da Ponte de Arame e o arrastasse a correnteza; as tábuas, a meio da ponte, estavam partidas. Mas era impossível compreender o que levara um Fiat Balilla, numa madrugada chuvosa de Abril, a aventurar-se sobre uma ponte pedonal que ligava, é certo, uma parte do mundo a outra parte do mundo, o estradão da Aldeia às estradas de macadame e às luzes das cidades longínquas.


A Ponte de Arame vista a partir da curva do Lameiro Grande. Fotografia de 1999. Autor: Maria Teresa.

30.

Luísa deitou-se. Já era tarde. João e Adriano Fontes ficaram na sala de entrada da Pensão Americana. «Fechem-me as portas; não se esqueçam de me apagar as luzes.» Comiam presunto, bebiam canecas sucessivas de vinho de Anelhe. Não havia uma nuvem no fim de tarde; estava um calor quase insuportável. E, de súbito, uma aragem anunciou-se nas folhas minúsculas do espinheiro-da-virgínia do largo do Toural. E, como se o Inverno voltasse de novo, começou a chover. Luísa acordou com as mãos de João a tocar-lhe a pele muito devagar; acordou na surpresa de sentir o seu corpo regressar a si mesmo. A chuva, lá fora: sobre os telhados e a copa das árvores e o zinco dos anexos. Luísa quase não se movia. As mãos de João Pequeno tocavam a sua pele como se apenas a pressentissem; como se a procurassem, um poro e depois outro, desde um tempo antigo; como se, procurando o seu corpo, o desenhassem pela primeira vez. A chuva, lá fora: o barulho da chuva sobre os telhados e a copa das árvores e o zinco dos anexos. Até à vertigem ou à certeza de que o amor existe num único momento para sempre. E, com a chuva ainda nos telhados, acordou; a luz indecisa a entrar no quarto. Estendeu as mãos. João não estava a seu lado. Chovia ainda. Chovia sempre. E Luísa temeu que tudo (o mundo, o prazer, o amor) não passasse de um sonho.

29.

Luísa sentia-se confusa. Havia dois tempos que pareciam sobrepor-se e afastar-se. E, entre eles, as interrogações; as dúvidas. Luísa ouvia apenas a espaços os diálogos de João e Adriano. «Isto, como você sabe, é uma máquina; vai onde se quiser, amigo João; ao fim do mundo.» O tempo, a passagem do tempo, era o objecto de reflexão. Luísa compreendia finalmente que o prazer não está no que julgamos ter mas no que se teme perder do que se dá e recebe. Luísa conhecia o prazer de o procurar em si mesma; e de o receber dos outros. Mas só agora compreendia que o prazer verdadeiro se desenha na fronteira dos desastres; na precariedade dos seus excessos e das suas iluminações. Talvez o amor e o prazer pudessem confundir-se. Talvez fosse preciso o tempo (a passagem do tempo) para que o prazer (o amor) alumiasse as suas falhas, as suas ausências. «O mundo, amigo João. Oh, o mundo. O mundo é o que quisermos que nos possa pertencer. A Vila, claro, como sabe…» Porque o amor (o prazer) não existe se a conquista não for a sua permanente definição. E Luísa sentia o prazer pela primeira vez. Procurando-se; lutando por ele; na certeza de que o hedonismo não é senão a máscara do que verdadeiramente procuramos em nós mesmos. «Sim, o Brasil. O Brasil. A imensa Europa. A música, as cidades, as mulheres, amigo João.» O Fiat avançava por dentro da tarde quente; entre a poeira levantada e a sombra que começava a descer. E Luísa sentia-se confusa: descobrira finalmente o amor; e intuía o quanto esse momento era raro entre a terra e o céu.

sábado, outubro 11, 2008

28.

Eram quase cinco horas quando chegaram ao largo do Meio da Aldeia. Os cromados do Fiat Balilla reluziam na tarde que declinava como se o pó do estradão, horas antes, não tivesse coberto a carroçaria em várias camadas e não se tivesse entranhado nas juntas e nos prumos metálicos da protecção do motor, nos aros, nos globos dos faróis; e como se o pó, já a seguir, não voltasse a recobrir tudo. Adriano, ainda assim, sorria. «Que belo passeio, ah?» João olhou a casa do padrinho, a cancela do pátio, a escaleira que dá ao terraço, os vidros da janela onde bateu com o nó dos dedos na madrugada longínqua de Julho de mil novecentos e dezanove. Um momento breve; porque de imediato entrou no carro. Sem uma palavra. E, como Luísa haveria de dizer mais tarde, «não olhou para trás uma única vez.»

quinta-feira, outubro 09, 2008

27.

Talvez tivesse sido plantada em mil oitocentos e sessenta e cinco. Porque foi nessa altura que Américo Fontes deixou a Aldeia e começou a limpar o terreno da Mina e, aos poucos, a erguer muros e paredes. As casas têm um cheiro que não se repete. Esta casa está impregnada do aroma da tília de folhas pequenas em forma de coração. João vagueia pelo perímetro dessa parte do mundo; sobe a escaleira exterior e, da pedra da varanda, olha o pátio onde a árvore continua a erguer-se como se o seu papel fosse o de testemunhar a ruína e guardar os segredos. Por entre caliça e poeira, por entre pedra miúda e restos dos travejamentos, João vê uma lata de conservas enferrujada, a moldura de um retrato, cacos de loiça e de vidros de espelho, um pente, um bacio de esmalte, uma boneca de plástico sem pernas nem braços, os sinais de fogo onde foi a lareira, cinza calcinada no chão do forno, ferros da cabeceira das camas, um garfo, uma trempe retorcida, um alguidar partido. João vagueia pela casa como se o odor da tília trouxesse o passado e o misturasse ao tempo presente. Mas tudo são restos, pedaços, resíduos. Luísa repete: «vai sendo tarde, João». E enfim regressam. Caminham em silêncio. Até que João pára por um instante como se fizesse um resumo: «Vou reconstruir a casa. Ainda haveremos de viver aqui. Amanhã mesmo começo a tratar das coisas.» A copa da árvore desenhava-se ainda sobre a ruína quando retomaram o caminho de regresso à Aldeia; as águas do rio, ao fundo, desciam o muro da presa, corriam por entre as poldras do gralheiro da curva do Lameiro Grande; o rumor da corrente ouvia-se como o eco de coisas distantes no tempo; e depois o silêncio caiu de novo sobre a montanha.

Casa a Jusante da Ponte de Arame. Fotografia de meados dos anos 60 do século XX. Autor: dr. João Marcos.

26.

[Não, claro. Isso é outra história. Já chega de novelos; e de tragédia. Não vem ao caso. Concordo. A sério. Adiante.]

25.

O mundo, em grande parte, era o rio: as casas da encosta descendo na direcção do rio; a pesca às trutas; o pequeno vale da Casa a Jusante da Ponte de Arame subindo-se das margens do Beça; os montes e as suas veredas e os seus bosques em declive reflectidos na água das presas; os freixos e os salgueiros das margens; as ervas secas do Verão e os paus arrastados pela enxurrada deixando nos ramos dos amieiros as marcas dos anéis da enchente. Mas a casa, agora [e o rio, e a árvore], não era apenas uma ruína: mas a ruína sem o mundo desse tempo. E João recorda a copa imensa da tília silvestre quase arredondada e a surpresa do avermelhado na parte superior dos raminhos jovens; e as folhas em forma de coração; e as suas flores aromáticas e quase transparentes no mês de Junho. A tília, portanto, era a mesma de sempre; metáfora do mundo; árvore dos segredos. O mais certo é que tivesse sido plantada no ano de mil oitocentos e sessenta e cinco. Porque foi em mil oitocentos e sessenta e cinco que Américo Fontes decidiu deixar a Aldeia. Nessa manhã de Março, depois da missa de sétimo dia em memória de Irene Custódio, Américo viu Joaquim Gomes sentado na pedra do adro; as golas da samarra puxadas; um cigarro vagaroso; um sorriso irónico de quem é credor das coisas do mundo. Américo sentiu o sangue a correr-lhe nas veias; lesto. E foi então que

quarta-feira, outubro 08, 2008

24.

João olhou os alpendres derruídos e as paredes quase tapadas pela hera e a vinha-virgem. Mas, antes, descendo o talude coberto de avoadinha e trevo, a memória do lugar foi-lhe devolvida pelo odor da tília do pátio erguendo-se na manhã clara de Abril. As jornadas de pesca quase sempre (João teria dezasseis, dezassete, dezoito anos) terminavam à sombra daquela árvore; estendendo-se a merenda na tábua de carvalho assente sobre duas pedras fincadas. João, por essa altura, desconhecia [e sabia] que tinha nascido ali. E também o mundo, então, era ainda jovem. Como se as coisas fossem nascendo à medida que se lhes dava um nome; como se fossem sendo desenhadas, uma a uma, para que o futuro as guardasse, intactas, na voragem do tempo.

terça-feira, outubro 07, 2008

23.

São cinco quilómetros desde o Meio da Aldeia à casa a Jusante da Ponte de Arame por um carreiro de terra que os matos foram cobrindo. João e Luísa caminhavam em silêncio. Ambos sabiam que João procurava mais que o lugar onde nascera. Porque na história da sua vida tudo era nebuloso. Segredo e tragédia misturavam-se para desenhar um novelo de fios dispersos. João não desconhecia que a mãe morrera durante o parto na casa a Jusante da Ponte de Arame e que Manuel Pequeno não era senão o seu pai adoptivo; não lhe era desconhecida a história dos amores clandestinos de Leonor Fontes e do engenheiro das florestas. Mas tudo isso lhe fora aparecendo desligado ao longo dos anos; em rumores e em peças separadas que lentamente foi recolhendo sem nunca conseguir juntá-las nos seus entalhes. Até desistir. Até apagar o passado. E tudo já ser (como se pudesse ser) indiferente.

Casa a Jusante da Ponte de Arame. Zona do espigueiro. Fotografia dos anos 40. (A. anónimo)

domingo, outubro 05, 2008

22.

João Pequeno não queria acreditar quando olhou o carro parado no Largo: o tejadilho bege, plano; os seis vidros rectangulares; a oval do motor com a protecção da grelha formada por elementos metálicos verticais; os guarda-lamas castanhos e a sua curvatura em onda a realçar a elegância da carroçaria desenhada em linhas quase rectas; a barra finíssima do pára-choques com uma ligeira curvatura nas extremidades; os dois faróis redondos incrustados na moldura inoxidável; o pneu sobressalente pendurado por correias de cabedal adiante da porta do lado direito; os aros reluzentes das rodas. O motorista sorria; adivinhava o deslumbramento que o carro causava a João Pequeno. «Vê-se que é entendido», disse; antes mesmo que a João se lhe ouvisse uma palavra. «Bem, só pode ser um Fiat Balilla. Mas confesso que desconhecia este modelo.» João Pequeno regressava de novo aos lugares onde nascera. E olhava as amoreiras do Noro, o pó levantado no caminho que subia quase a pique até ao Padrão e seguia depois a encosta do lado poente da serra da Seixa. «Já ouvi falar de si. Mas é claro que não nos conhecemos: estabeleci-me na Vila há pouco mais de dois anos; faz amanhã dois anos e dois meses.» E, lá ao fundo, a espaços, o rio desenhava-se iluminado pela claridade da manhã de Abril; serpenteando por entre a montanha; desaparecendo de novo. O Fiat Balilla avançava na manhã clara e azul. Os pinheiros dominavam a paisagem; de um e outro lado do estradão; elevando-se nas colinas; a perder-se nas sucessivas cumeadas. «Outro destes não encontrará você no país; é este, e dois em Itália; à experiência; veio-me, como imagina, directamente de Turim.» O passado regressava numa luz baça. E João recordou um dia antigo e o rumor da água das ribeiras a descer os alcantilados da serra; o odor das flores da urze pisadas pelas patas dos cavalos; uma casa em Lamego; um outro rosto. «Eu contava-lhe, mas você não ia acreditar.» E então, numa curva súbita, o casario de granito; compacto; os telhados e as pedras inteiras dos vãos; a calçada do caminho que haveria de levar ao Meio da Aldeia. «Contingências da vida. O meu pai era o maior amigo do sócio de Giovanni Agnelli. Um senhor. Um aristocrata, como deve saber. Ele devia-lhe favores de honra. Ou não devia. Outros tempos. A amizade, sabe como é.» O largo do Meio da Aldeia; o novo tanque construído pela ditadura nacional; a mão que Luísa lhe estendia no temor de que tudo o que começava a erguer-se pudesse desmoronar como as paredes das casas onde o silêncio se misturava às raízes das árvores. «Este motor, já viu? Parece um relógio suíço. Isto, quando começar a comercializar-se, é um ver-se-te-avias.» O largo do Meio da Aldeia; os bois barrosos, lentos, a meio da manhã, a regressar dos lameiros das águas de lima; as histórias inverosímeis de Adriano Marques; um tempo antigo; o eco de um tiro a repercutir na memória. Como se tudo se misturasse até à impossibilidade da narrativa; como se os factos e a memória dos factos não coincidissem nem pudessem coincidir. Uma tontura. E a voz de Luísa, distante na manhã clara de Abril de mil novecentos e trinta e um: «O senhor Adriano já sabe: espera-nos aqui por volta das quatro da tarde.» O tempo dividido; a incoerência cronológica; um vórtice; como se nada fizesse sentido.

sábado, outubro 04, 2008

21.

E, portanto, rumaram enfim à casa a Jusante da Ponte de Arame. Luísa temia que João Pequeno não estivesse preparado para o confronto com a ruína e a desolação; que a memória lhe devolvesse um lugar que não existiu nunca ou que não poderia já existir depois de tantos anos de silêncio e ausência. Ainda o tentou demover. Mas havia uma alegria infantil no seu rosto, nos seus gestos, nas suas palavras; um entusiasmo inamovível. E falava já da reconstrução da casa e dos muros. E via-se a acordar cedo, a descer ao rio, a pescar nas presas, ao saltão, nos dias quentes, ou a fazer vagarosos lançamentos à pluma até as trutas saltarem fora da água como se saíssem da treva e riscassem, no fundo do vale encaixado, a placidez das manhãs resguardadas pela quietação da montanha. Era um sábado. E ouvia-se o ruído do motor do carro de praça, lá fora, no largo do Toural, quando desciam a escaleira da Pensão que levava à sala da entrada.
20.

Acordaram agarrados um ao outro. Já era tarde da manhã. A luz entrava pela janela do quarto e a neve do dia anterior quase desaparecera da copa das árvores e das ruas. Talvez a Primavera pudesse começar; talvez o Abril, depois da neve que amaciara o tempo, e já que o Março correra sem uma ponta de vento, não trouxesse as costumadas águas mil.

quinta-feira, outubro 02, 2008

19.

A geada desses dias de Março só não queimou as ervas ruins e um estranho silêncio poisava em tudo; nem se deu por que a perdiz arrulhasse. Até que a manhã de seis de Abril trouxe a neve das cumeadas distantes e espalhou-a a toda a largura do vale; sobre as ruas e as casas e as árvores. E o sol, a meio da tarde, começou o degelo. E foi então, doze dias depois, que João acordou de novo e saiu da cama. Luísa deixara o quarto por breves instantes e quando regressou viu-o à janela a olhar os campos da veiga como se também ele se preparasse para sair de um antigo estado de repouso vegetativo; e olharam-se e sorriram para que o mundo pudesse começar de novo depois do gelo e da neve. João sentia uma absurda felicidade. Desceu para jantar na sala de entrada da Pensão Americana; riu; contou histórias em voz alta e um ligeiro sotaque do Brasil; bebeu vinho de Anelhe; conversou até tarde com Fernando Lalice. Lá fora ouvia-se o vento a bater no latão dos anexos; depois de tanto tempo sem uma aragem, sem que se escutasse o seu rumorejar nos ramos mais finos do espinheiro-da-virgínia do Toural ou dos vidoeiros do Noro. E quando Luísa subia finalmente a caminho do quarto, viu uma luz trémula a espalhar-se no patamar da escaleira. João Pequeno estava no corredor, de pé, parado, em silêncio, à sua espera; o rosto iluminado pela oval escarlate de uma vela acesa que tinha nas mãos.

quarta-feira, outubro 01, 2008

18.

João acordou; olhou Luísa nos seus olhos claros; sorriu; e adormeceu de novo. E depois dormiu durante doze dias seguidos, acordando apenas a breves espaços em que dizia coisas aparentemente sem sentido. E Luísa pensou que talvez houvesse uma diferença fundamental entre o que foi e o que sentimos que foi; e que talvez, a ser assim, João tivesse apenas memórias do que sentiu (não do que viveu) durante o curso dos anos vividos. Porque falava de coisas misturadas, sem cronologia, sem arrumação dos factos. O seu rosto (dela, Luísa), por exemplo (e a sua pele, e os seus olhos «iluminados por dentro», e as suas mãos), ganhavam nas palavras de João Pequeno (na memória que retinha do tempo antigo) um espaço que o tempo real e verdadeiro não lhe concedera (a ela) nunca. João Pequeno, durante esse estado febril, falava do mundo como se o mundo não pudesse deixar de ser o que sentimos que deveria ter sido.

17.

Luísa imagina por instantes que o passado e o presente se misturam até que tudo seja o que já foi.

16.

O mundo é um novelo de fios que desenham a trama; que se unem e desprendem; que se ligam e desligam; que se perdem e encontram. É assim o mundo: quase um rumor: a descer as encostas e os caminhos de terra e o espírito dos declives; a ficar suspenso nas árvores dos bosques; a entrar nas casas; a misturar-se na luz da manhã; a atravessar o mar oceano; a regressar sobre as águas; a ficar para sempre entre os dedos como a memória de tudo. É assim o mundo: um espelho a reflectir o que não existe.