sábado, novembro 01, 2008

4.

Fernando Lalice, Agenor e Arnaldo Adão, o Lindinho, almoçaram na sala da entrada da Pensão Americana. Era um sábado de Julho, de finais de Julho de mil novecentos e trinta e um. O calor poisava na abóbada do vale como uma nuvem espessa: agarrada à pele das crianças, agarrada às folhas das árvores, misturada no ar incandescente. Ninguém sabe ao certo o que se passou nesse dia e nos dias e nos meses que se sucederam a esse dia em que Lalice comemorava a empreitada de remodelação do mobiliário do colégio do Eiró. Imagino o Lindinho a lamentar para si mesmo que Luísa já não lhe pedisse ajuda na preparação do clafouti de maçã reineta; que Agenor, sabendo embora da gravidez de Luísa, a olhasse ainda como se um rio desaguasse no seu corpo; e imagino que Lalice, muito dado à farinheira frita e à truta de escabeche, fosse pedindo «vinho, minha querida, até lhe chegarmos com um dedo». Era, como lhe digo, uma tarde quente de finais de Julho. O povo, claro, falava da gravidez de Luísa; dessa «vergonha»; e ligava o sexo (e a desonra, e a infâmia) ao desaparecimento de João Pequeno e Adriano numa noite de chuva e vento sobre os telhados e os vidoeiros e os pinheiros bravos. Porque o sexo decorria da ideia de prazer; e o prazer representava o pecado supremo de sentir-se o corpo por dentro dele. O certo é que Luísa estava feliz; ria; falava em voz alta. Lalice é assim que a recorda durante o almoço, trazendo as sobremesas, o café, o medronho de Fiães: «Cheguei a pensar que o filho da puta do João Pequeno nunca tinha saído do seu quarto da Pensão e que Luísa se ria de nós a esconder um segredo.»