segunda-feira, dezembro 01, 2008

5.

É incrível imaginar que há pouco mais de cem anos não existia aqui um único pinheiro; e que hoje não haveria outra espécie por estes montes e vales se os incêndios não fossem devastando as matas contínuas de resinosas feitas para isso mesmo: para a combustão e o avanço do deserto. Essa foi a maior transformação de todas. O Estado, na sua acção, não visa a felicidade do indivíduo concreto: move-o a ideia abstracta de um interesse «superior». Tão superior e geral e abrangente que, vai-se a ver, acaba por vogar muito acima (e portanto fora) dos interesses específicos das pessoas comuns. O interior sempre foi vítima desta desvelada atenção do Estado. Porque o impulso da acção governativa reverte do princípio de que é preciso acudir ao todo. Ora um Estado centralizador nunca compreendeu que o todo é, ou deveria ser, a soma das partes. E, portanto, em nome do todo abstracto fodeu o todo concreto ao derruir as partes que o constituem. Foi o bem comum que justificou o envio a estas longes terras de topógrafos e engenheiros florestais por finais do século dezanove. As experiências com o pinheiro bravo participavam do desígnio de revitalização económica da Nação «como um todo». O obscuro bem comum, no entanto, como cedo se verificou, começava pela lesão do interesse particular. Ora a densidade populacional sempre foi um conceito a que o Estado não soube nunca ficar imune. Pelas razões óbvias de sobrevivência política, claro. Mas por uma outra decisiva razão: o Estado é uma cortina por detrás da qual há sempre um rosto ou vários rostos e essa necessidade tão humana do reconhecimento e do aplauso. E o interior não dava, nunca deu, notícias, visibilidade, votos, vivas ou sinais de aclamação. Fomos sempre poucos; e esquecidos na exacta proporção desse número. Não contávamos; não contamos. E o bem comum mais vasto que o Estado prossegue não vai agora empancar numa família ou numa comunidade dispersa e sem outra voz que a do silêncio. Por isso a gente da província temia a intervenção do Estado. A ideia era a de que onde metesse a pata ou vinha foda ou canelada. Viu-se com esse exercício experimental de finais do século dezanove a que apenas não se deu seguimento por mor das crises e das trapalhadas políticas que se sucederam até chegar, tantos anos depois, o salvador da Pátria e do interesse público. E o que começou então por fazer-se foi apenas o que os sucessivos distúrbios governativos impediram que mais cedo se fizesse. O Estado (a sua pata) veio de novo às periferias e à baixa densidade. Vários objectivos pretendiam atingir-se com o Plano de Fomento Florestal de mil novecentos e trinta e oito; múltiplos, menos o de salvaguardar os interesses dos que viviam nos lugares onde a floresta haveria de avançar sobre baldios e terrenos comunitários. «Reafirmar a continuidade da alma nacional», «desenvolvimento industrial», «exportação», «reconstruir bosques que os antepassados não separaram nunca da sua aldeia distante quando dela se lembravam em terras de outros continentes» – eis os termos e as considerações preambulares de um Plano em que o Estado garantia o progresso da indústria por via da condenação à fome de quem assistia assim ao avanço do abstracto interesse nacional, do bem comum, a roubar-lhe os pastos concretos e a lenha e os matos e a madeira e o direito a usar o que lhe pertencia. Mas a transformação da paisagem, claro, começou muito antes. E teve sempre a mão do homem. Com a diferença de que, ausente a pata estatal, os equilíbrios se garantiam. Passámos ontem no crasto da Cidadela e você não se teve, olhando os restos das casas circulares e as escadas interiores por onde se acedia às muralhas defensivas, que não dissesse: «até aqui os pinheiros chegaram, os filhos da puta». E olhou o pequeno bosque de carvalhos na vertente cortada quase a pique sobre o ribeiro que desagua no Beça, e as duas ou três linhas de salgueiros e freixos serpenteando na margem, como se essa, multiplicada pelas encostas e pelas cumeadas e pelos terraços das vertentes, fosse a imagem que a sua memória do paraíso lhe devolve. Mas não é assim: nós, há uns cinco milénios, chegámos aqui e cortámos as árvores antigas e queimámos os matos. E se deixámos esses carvalhos e esses vidoeiros foi apenas porque não davam terrenos de pastagem ou o declive não justificava a empreitada. O homem fixava-se ao território e precisava de mel e cereais e lameiros e carqueja e tojo e carvão. O que lhe quero dizer é que a paisagem é uma construção humana. E que esta tília foi plantada por alguém que procurou, contra a inclemência, o prazer de uma sombra no Verão. O que lhe quero dizer é que aquela parede de cimento deveria ser mantida no projecto de reconstrução da casa. Sei que vai contra os seus princípios de manter ou recuperar a memória original do perpianho, das padieiras de pedra, dos tabiques, das empenas sem emparelhamento. Mas há uma história. Há sempre uma história. Que inscrição é aquela na parede de cimento a indicar uma data? O que aconteceu aqui que levou alguém a deixar na parede a inscrição do ano de mil novecentos e sessenta e oito? Seja o que for. É tudo uma construção do homem: a natureza, um bosque, uma casa, uma tília erguida num pátio. Até esta mancha contínua de pinheiros que a pata do Estado trouxe de longe para que hoje possamos sentir, apesar de tudo, o odor da resina a atravessar o rio e a poisar nesta mesa feita com uma tábua das bobines dos cabos eléctricos dos anos cinquenta.