domingo, janeiro 25, 2009

8.

Vicente bateu à porta. Repetidas vezes. Não o tinha visto sair. Estranhara. Estava preocupado. Eram onze da manhã. João apareceu ainda vestido, pálido, o olhar cavado. «Me quase pareces o demo, mó.» Que estava doente. Que uma tontura, desde o fim de tarde do dia anterior, o atravessava como um gume de navalha. «Tu me estás é almariado. Hoje temos raia alhada no Castro. É à uma.» A irrealidade. As conversas sem sentido, as ruas a entrar nos quartos, as janelas de uma casa e outra a misturarem vozes, silêncios, segredos. «Pois foi assim, numa tarde de levante, que descobri a Espanha. Não sabe o amigo engenheiro? É o almareio. Me andava à procura de estrume e atravessei o rio. Ninguém sabia o que estava do lado de lá. Não havia ponte, isso foi só com os dinheiros da Europa. E depois perguntaram-me: e há estrume? E eu que sim: há e a monte. O certo é que agora todos vão a Ayamonte em havendo falta de estrume.» Vicente ria com todos os seus dentes à mostra; até às lágrimas. A olhar o meu espanto, a incompreensão. A medir-me. A ver até onde o Sertão começava ou não a pertencer-me. A espuma, a ondulação, as águas revolvidas a trazer os limos à praia. «O segredo é esmagar os alhos com o fígado.» A raia. O vinho da serra. Tatiana a aparecer para o café: a saia muito curta, os pés descalços no areal, um sorriso de distâncias, intimidades, promessas. O almareio do vento do levante como se apenas a linha ondulada do horizonte separasse as coisas da terra e as coisas do céu.