segunda-feira, janeiro 12, 2009

Capítulo I
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1.
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João sentiu que todo o seu mundo se desmoronava no momento em que leu esses três versos. Como se nada existisse antes do relâmpago das sílabas vagarosas do poema. E o mais certo, no entanto, era que o poema não lhe pertencesse. É verdade que lhe tinha sido enviado com uma dedicatória. É verdade que, num certo sentido, o esperava no entendimento de que lhe era devido. Esperava o poema ou um sinal assim: uma pedra lançada sobre as águas calmas da ria a abrir e alargar círculos sucessivos; as fasquias dos andaimes a riscar uma parede de cal iluminada pela luz de Junho. Mas o mais certo era que não lhe pertencesse. Porque vivemos num tempo em que as palavras se acumulam e sobrepõem e multiplicam até à irrisão. Porque vivemos em rede e não sabemos já se uma palavra ou uma frase nos foi dirigida ou apenas devolvida pela reverberação de um labirinto de nomes onde o nosso nome não é mais que um nome nas listas infindáveis de nomes. E no entanto esperava um sinal assim. Um poema. Três versos. Umas quantas vagarosas sílabas. Como o eco de um ferro a repercutir por dentro da noite.