terça-feira, abril 28, 2009

[Casas novas]

Uma sombra fugidia atravessa o cenário
como se um amável fantasma
dos livros deambulasse por entre
os talos curtos de couve penca
e as casas novas com escaleira exterior
de granito e persianas de plástico.
A estrada do loteamento rasgou os campos
e as cancelas das traseiras dos
quintais abrem agora à frente urbana.

sábado, abril 25, 2009

[O Condestável]

Não precisavas
de ser santo 
para sê-lo.

Sê-lo-ás 
agora menos
que o és.

sexta-feira, abril 24, 2009

[Prémios]

O poeta laureado
não perguntou 
pela coroa 

de louros
ao entregarem-lhe 
o cheque.

[O sonho]

Quando acordei do sonho
de ter vencido nas olimpíadas
os quatrocentos metros barreiras

nenhum músculo me doía
e apenas me tocava
o desencanto

de ver que do pescoço
não pendia
nenhuma medalha de ouro.

[A traça]

O bicho dos livros analfabeto
só come
nos cantos 

da página
fora do corpo 
do texto.

quinta-feira, abril 23, 2009

[O pão]

Não queiras saber da roça
e do mato levado em gabelas
aos pátios e aos currais.
Não queiras saber do estrume
que a fertilidade dos campos
exige. Olha o pão a ser retirado
do forno e imagina que tudo
começou no fintar e no tender
e no calor das brasas varridas
com o matão da urzeira.

terça-feira, abril 21, 2009

[O uso dos venenos]

Desde sempre o direito agrário do reino
proíbe lançar-se o trovisco
nos rios e lagoas. O trovisco
retira o oxigénio das águas
e os seus ramos espetados nos linhares
afastam as bruxas. O direito
e a tradição dividem-se no uso
dos venenos. Por omissão legislativa
os cachos das flores aromáticas do trovisco
enlouquecem ainda as raparigas
que recolhem os arbustos em Abril
para fazer vassouras de varrer os pátios.

segunda-feira, abril 20, 2009

[O que não interessa]

Cresce desmesuradamente nos campos
o que não interessa.
Preparas a calda num pequeno
lagar de pedra e cortas as ervas
e depois com a mesma tesoura de sempre
os rebentos largos e inúteis
das videiras.

domingo, abril 19, 2009

[Os Sete Epígonos de Tebas]

OS QUE SE DEDICAM ÀS ARTES CÉNICAS

Agora me lembro –
do fundo das noras erguia-se
a labareda
das rosas
dos quintais.
Aprendera a respirar
abaixo
da linha de água.
Mas não era possível ainda
enlouquecer
pela perseverança
nas artes cénicas. E então as mulheres dos montes
viravam os estrados
para o lado de dentro
dos teatros
como se o luxo
da estreia
fosse quase insuportável
e irradiasse nos espelhos
das cerimónias. Agora me lembro –
do modo como o pêndulo
na imensa manhã desse tempo
oscilava
nos ensaios
e
ia e
vinha.


A VARA INCANDESCENTE

Mais que a tempestade ou o dilúvio
o crepúsculo
era o inverno. Porque no interior
da treva demorada
as roldanas dos poços
e a ferrugem
exerciam o ofício de trazer aos alguidares de barro
os rumorosos
óxidos
das nascentes:
e moviam as alavancas
de queimar a urze
nos pátios: e poisavam nas mesas
de pão
o brilho
estrangeiro
das missangas
preciosas. As crianças adormeciam – se o
vento varria nas varandas
a vagarosa vara
incandescente
do ulmeiro
jovem.

Nota: Estes dois poemas fazem parte do original vencedor do Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama 2009. Em «Os Sete Epígonos de Tebas» estabelece-se um jogo de espelhos com a obra de Herberto Helder – com os riscos inerentes, claro, de o lume dessa poesia queimar os versos que a confrontam.

[Podar as videiras]

Podar as videiras é
um exercício em que a estética
prevalece sobre o princípio
dos ramos produtivos. Um
arado corre a direito
para que a geometria 
e o comum da terra
possam encontrar-se no fim
das manhãs de Fevereiro.

sexta-feira, abril 17, 2009

[Serões]

O frio trazia a imobilidade
nocturna. Nem automóveis nem pessoas
cortavam o silêncio das ruas
e dos largos. Em não havendo lua
os próprios cães deixavam
de ladrar. Só dentro de casa
a luz irregular do petróleo
fazia mover os objectos.

[O que vem dos poemas]

É no fim das manhãs de Abril
e não sabes já o que vem dos poemas
ou do que lhes trouxe as iluminadas
e precárias sílabas: o voo das aves a regressar
aos campos lavrados; o odor
da hortelã pisada pelas crianças
nas veredas das bouças.

quarta-feira, abril 15, 2009

[Novembro]

Esperava-se a chuva ou o frio
como um sinal de que tudo
estava certo. Fechava-se sobre os campos
um ciclo que finda e logo
recomeça. Mas então
era o domínio do fogo da lareira
mesmo que os dias
depois das chuvas devolvessem
às ruas a claridade das folhas dos carvalhais
e alguém fosse desatando
os pedaços de ráfia que ficam
a apodrecer nos arames das vinhas.

terça-feira, abril 14, 2009

[17/2]

Saímos muito cedo. A névoa
diluía os contornos das paredes das casas
e dos muros dos quintais. Nem olhámos
pelo retrovisor. A distância parecia começar
a proteger-nos. E no entanto
continuava a perseguir-nos
o odor das bagas ácidas do arando.

segunda-feira, abril 13, 2009

[Conhecemos às vezes]

Conhecemos às vezes as cidades
apenas pelo que não vem nos roteiros
nem chegávamos a
supor: do Rio de Janeiro
não recordas mais que o fim
de tarde no aterro do Flamengo
a ver um jogo na TV
e a discutir com um velho
a meio de sucessivos chopes
o ataque do Vasco da Gama.

quinta-feira, abril 09, 2009

[No Junqueira]

Víamos os jogos do mundial
no Junqueira em dois grupos
separados por mesas de madeira
cobertas com toalhas de plástico de
um lado com quadrados brancos
e vermelhos e brancos e azuis
do outro. Uns a favor
do Brasil a gabar a criatividade
do jogo e o mais certo a imaginarem-se
estendidos no Leblon com as gajas 
bronzeadas das telenovelas
a mamar um chope ou a pagar-lhes
caipirinhas. Outros a favor
da Itália a realçar a organização
defensiva que nem por 
hipótese académica as Chaves
do Areeiro a preparar-se 
para uma acção inspectiva aos
cofres. Da cerveja muito fresca
é que partilhávamos todos contra 
o calor excessivo e invulgar 
dessa tarde de cinco de Julho
de mil novecentos e oitenta e dois.

[O teu quarto da residência universitária]

Fechavas as gelosias às luzes 
da cidade que não andavam longe 
e na aparelhagem (nesse
tempo dizia-se assim) ouvia-se a 
inevitável música brasileira 
romântica. Nem chegavam a irritar-me 
os pauzinhos de incenso e 
aquelas sedas que pareciam
da Índia compradas na feira 
da ladra suspensas de varões 
torneados de plástico a imitar
a madeira de carvalho. Éramos todos 
tão modernos que a porta 
do quarto ficava aberta a noite
toda e podia dar-se o caso de alguém 
entrar e perguntar à duas
da manhã se o 4ac da fórmula 
resolvente tinha 
que vir entre parêntesis.

[Esses dois anos]

Olhamos a labareda concentrados nesse
rumor que parece ser 
de oxigénio a consumir-se e
pela primeira vez depois de tantos anos
ouso puxar a conversa sobre as raparigas estrangeiras
de que não chegámos nunca a saber o nome
por responderem sempre a um outro nome
que lhes dávamos. Pergunto então

se te recordas. E tu manténs
o silêncio que a memória trazia de longe e tão perto
do vento nos ramos dos salgueiros das margens
da neve descendo as encostas
até responderes vagarosamente sem erguer a cabeça
continuando a olhar a labareda 
e a ouvir o seu rumor: não me lembro 
de ter havido inverno durante esses dois anos
em boa verdade nunca
chegámos a acender a lareira.

terça-feira, abril 07, 2009

[Cicatrizes]

Guardei sem medo
a tua navalha
sabendo

que era ela
quem menos
poderia cortar-me.

domingo, abril 05, 2009

[Às vezes é preciso não compreender]

Às vezes é preciso não compreender.
Às vezes é preciso deixar as palavras entregues
à interrogação e (por essa via)
ao sobressalto. Às vezes 
em vez das páginas dos livros
é preciso deixar que as palavras devolvam
o centro imaterial dos seus obscuros
significados. E deixá-las assim.

Nas aldeias o tempo difere os eventos
como se a cronologia subvertesse
a realidade objectiva
e o futuro e a memória se confundissem
na poeira levantada dos caminhos

que levam aos largos. Eu e tu procuramos
o que julgámos ter ficado suspenso
da árvore incombustível dos pronomes
possessivos. Eu e tu regressamos à procura
do rumor antigo das águas de nascente
a correr nos tanques. E só então nos apercebemos
de como as horas correm

e de como as sebes altíssimas da adolescência
erguidas nos limites da propriedade
nos entregam a cúpula insignificante
do grande vazio das nossas vidas.

quinta-feira, abril 02, 2009

[Modalidades olímpicas. 5: Natação]

Dissesses-me 
uma única 
palavra 

e eu fazia os duzentos metros 
mariposa
debaixo de água.

quarta-feira, abril 01, 2009

[Modalidades olímpicas. 4: Salto em altura]

Em voo sobre a
fasquia há um momento
em que o céu

e a memória
dos teus olhos
se confundem.