segunda-feira, agosto 24, 2009

[Que a literatura]

É verdade que a literatura se resume
a esse exercício de retirar as palavras a mais.
O haiku por exemplo não passa 
de uma tentativa falhada de reduzir ao silêncio
o que necessariamente deixa
atrás de si um excessivo rumor.

[É aquela coisa]

Há tatuagens que se nos impõem.
É aquela coisa (assim dizia o outro) 
do obscuro domínio.
Um dia acordamos com uma imprevista
tatuagem a cobrir-nos o corpo
todo. Como se tivesse que ser.
E nunca chegamos a compreender
como foi possível ficar-nos no corpo
essa marca indelével.

[A velocidade]

A velocidade é o lugar do Verão.
O lugar mais improvável
sendo certo que a lentidão
mistura às nascentes as suas raízes de fogo.
Mas temos pressa. E é no Verão
que procuramos a última
oportunidade das nossas vidas.

quarta-feira, agosto 19, 2009

[Do tempo]

As mulheres
deixavam as crianças
a raspar na pedra dos alicerces:
a procurar
com as palhas de centeio
o ouro
refractário. E
entravam nas presas dos linhares
a rasgar na ara
as sucessivas saias
de renda
que as atavam.
E se gritavam
era de si mesmas que recolhiam –
incombustíveis –
a pérola de vidro
iluminada
da passagem
do tempo.

quinta-feira, agosto 06, 2009

[O Texto]

Eu estava fascinado com o texto
por imaginar que
nenhum evento
repercutia
a sua abstracta
enunciação. Eu virava as páginas dos livros
e mudava
os parágrafos
e depois procurava no forno do povo
ou no tanque do largo
ou na balança dos alqueires do eido ou
na lenha de bétula arrumada nos telheiros
o eco da frase inaugural
dos romances. A província era propícia a este jogo
por ausência
de reverberação:
imensos vales
e sucessivas encostas
delimitadas
pelos cumes prodigiosos
e por figuras de estilo inscritas
nas tábuas
de esquadria
dos pátios. Mas depois
o fogo de novembro desenhava a nuvem dos labirintos
como
se nos afastados
corredores das livrarias
houvesse que disputar o espólio
futuro de nem
termos sido
jovens.

segunda-feira, agosto 03, 2009

[Um exame do Liceu]

Imagino, agora à distância, poucas conjugações mais adversas: eu tinha acabado de fazer dezassete anos, de saber a data do exame de matemática e de me apaixonar por uma rapariga belíssima do décimo primeiro ano de letras.

Lembro-me: o Notícias de Chaves aberto no suplemento do Florêncio. Ansioso, nervoso, à espera que ela saísse da aula de Filosofia. E, enfim, a mostrar-lhe o poema acabado de publicar. Era o começo da minha glória literária. Matilde (nome de código) leu vagarosamente. Depois olhou-me. «Que achas?», perguntei. Impaciente. Já a medo. E ela a ler de novo. Vagarosamente. E só então, num tom de opereta, num tom de falsete: «As obras de arte são de uma solidão infinita: para as abordar, nada pior que a crítica.» Eu fiquei a olhá-la, ela riu-se. «Anda», disse. Subimos à Rua Direita, descemos, entrámos na Ana Maria. «Acho que isto te vai fazer bem.» E ofereceu-me as Cartas a um Jovem Poeta, do Rilke.

Não me era estranha a aura intelectual que Matilde (nome de código) ganhara dia após dia nos corredores do Liceu. Os seus interesses, os seus conhecimentos, pareciam não ter fronteiras, limites. O Sebou, em compreendendo que havia ali uma chispa, avisou-me logo: «Ui, onde te vais meter.»

A matemática, portanto. Essa parecia a maior preocupação de Matilde. O meu exame. Como se os meus desassossegos lhe pertencessem. Uma preocupação a crescer à medida que o meu desinteresse se tornava mais óbvio.

Tínhamos combinado passar a tarde a estudar. Em casa dela. E ali estávamos nós, sozinhos, pela primeira vez. Sozinhos. Sentei-me, puxei do caderno de exercícios, do livro de matéria. Ela demorou-se na cozinha. Trouxe, enfim, chá e bolachas champagne, poisou o tabuleiro num canto da mesa redonda. Eu a olhá-la. Interdito. Deslumbrado. A morrer de desejo. Sentou-se. Eu continuava a olhá-la. A imaginar a curva finíssima dos seus ombros sob a blusa leve. «Quero tanto beijar-te, Matilde.» E ela a sorrir como se eu fosse parvo. E eu a respirar com dificuldade. A sentir-me parvo.

Matilde quebrou o gelo súbito, encheu duas chávenas com o chá ainda quente. «Bom. Vamos lá então a ver os teus grandes desafios, os teus grandes dramas.» Disse. Decidida, quase a impor uma ordem, a estender a mão esquerda ao livro de matemática. Não disfarcei um sorriso, a ironia, uma certa sobranceria. «Isto é complicado, Matilde. Isto não é filosofiazinha, os pré-socráticos a zimbrar conceitos, o Heraclito, o Zenão. Isto é senos e cossenos, tangentes. As chamadas funções complexas, Matilde.» E ela a corrigir-me: «Funções complexas elementares.» Não queria crer. Mau. Tu não queres ver que à gaja não lhe era estranha a trigonometria? Puxei dos galões. Fiz um ar sério. Abri o livro quase ao acaso. E disparei, pomposo, a arredondar as sílabas: «Pois muito bem: qual o valor máximo da função ípsilon igual a dez mais cinco cosseno vinte xis?» E ela a olhar-me como se me desarmasse. Como se me apanhasse em falso. Eu sem rectaguardas, sem defesas. E respondeu: «Quinze, claro. Dez mais cinco vezes um. É só fazer as contas. Quando é que o factor cosseno vinte xis é máximo? Quando, claro, é igual a um.»

A camioneta da carreira de Boticas saía do Jardim do Bacalhau às sete menos vinte. Sentei-me, sozinho, num dos bancos da frente. Sentia-me a pessoa mais infeliz à face da terra. Colei a cabeça ao vidro grande da janela, deixei que passassem por mim os telhados do Santo Amaro, a linha dos amieiros da margem do Tâmega, as valetas da subida de Curalha, os pinheiros da Pastoria, o castanheiro imenso no fim da recta de seiscentos metros que levava de Curalha às curvas fechadas de Casas Novas. E puxei do livro que Matilde (nome de código) me tinha oferecido em resposta a uma solicitação de crítica literária.

Foi então que o Sebou se aproximou e se sentou a meu lado. «Então aquilo lá deu em águas de bacalhau.» Continuei em silêncio. Sentia-me triste. «Mau. Já vi que te fodeu a molécula. E que livro é esse?» Abri as Cartas a um Jovem Poeta. De Rainer Maria Rilke. Ao calhas. E comecei a ler:

«Ninguém o pode aconselhar ou ajudar: ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende as suas raízes pelos recantos mais profundos da sua alma; confesse a si mesmo: morreria se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila da sua noite: ‘Sou forçado a escrever?’ Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar aquela pergunta severa por um forte e simples ‘sou’, então construa a sua vida de acordo com esta necessidade.»

A camioneta da carreira descia agora da Curva do Leite à Ponte Pedrinha. «Estás bonito, estás», disse o Sebou. E levantou-se.

Saí na paragem da Granja. Sentia-me triste, confuso. Nesse tempo eu vivia na Granja. Ia pela estrada, a caminho de casa, quando o Jeremias me acenou lá do fundo, das quatro mesas de plástico da esplanada do café das Sobreiras: «Tudo bem, campeão?» E eu que sim, a inventar um sorriso, a erguer a mão com o polegar esticado.


Publicado originalmente aqui.