quarta-feira, dezembro 29, 2010

[consoada]

Somos tão poucos quando estamos todos.
Somos tão poucos que nem sabemos
se a esta mesa em que estamos todos
não faltam todos os que já perdemos.

Somos tão poucos que nem contamos
olhando o lume da lareira acesa
quantos é que estamos, quantos faltamos
quando estamos todos sentados à mesa.

Somos tão poucos que já nem importa
se somos muitos, se somos poucos:
quando o silêncio nos bater à porta
já estamos todos e somos tão poucos.

quinta-feira, dezembro 23, 2010

[nenhum desses nomes]

jcb



Boas Festas e um bom ano de 2011. Com um forte abraço. JCB

quarta-feira, dezembro 22, 2010

[quase só o silêncio]

jcb

terça-feira, dezembro 21, 2010

[o esquecimento, 2]

jcb


[o esquecimento, 1]

Disse: esqueceis depressa.
E, como nos enigmas, deixou
um punhal
e uma lâmpada.

segunda-feira, dezembro 20, 2010

[paisagens]

jcb




[Esferográfica, marcadores e lápis de cor]

sábado, dezembro 18, 2010

[nunca ninguém]

jcb





«nunca ninguém». Acrílico sobre madeira de guarda-vestidos, 120x65 cm. 2010.

quarta-feira, dezembro 15, 2010

segunda-feira, dezembro 13, 2010

[perdas]

jcb




[caneta e giz das ementas de lousa dos restaurantes sobre toalha de papel]

sexta-feira, dezembro 10, 2010

[vime]

jcb

[a neve nas Alturas]


Sabemos que uma coisa não existe
senão no modo como a olhamos. A água benta
é apenas um bom exemplo:
o Homem é o único animal que a distingue

da água da torneira. Assim
a neve nas suas múltiplas representações:
a neve prosaica
que significa desconforto

e se mistura com a lama e desliza, entre espessa
e deslaçada, nas ruas e nos pátios;
a neve muito branca elevada à categoria simbólica

da purificação; a neve e o seu carácter
lúdico, jogo e divertimento,
riso e corrida nas descidas das veredas lisas.

A neve caiu mais uma vez (e deu-lhe forte)
sobre as aldeias e as vilas, das cumeadas
às encostas da urze, das colinas aos vales da aluvião,

dos largos aos terraços, dos telhados das casas
aos adros das igrejas. E novamente
o múltiplo olhar do mundo

a desenhou em cartas de rumo inúmeras, derivações,
diferenças: da exaltação à palavra avisada
do velho das Alturas do Barroso
que não se teve que não dissesse à algarvia jovem

que saltava na neve e deslizava como se estivesse por dentro
da nuvem dos sonhos dos livros: «pois se gosta
tanto dela
leve-a toda que não nos faz falta nenhuma.»




publicado originalmente aqui: http://chaves.blogs.sapo.pt/

fotografia tirada daqui: http://www.cm-boticas.pt/

terça-feira, novembro 30, 2010

[num tempo virado ao contrário]

Não atirava contra
os alvos fáceis e em si mesmo
guardava a lança
das cinco pontas envenenadas
dos desastres
como se existisse uma ética
num tempo virado ao contrário
em ser derrotado
no alto das colinas
defensivas.

segunda-feira, novembro 29, 2010

[armadilhas]

digo-te o que não sei
armadilhas que preparo contra mim

[a geada]

Deixamos os segredos atados aos
ramos das árvores
quando a geada desce
sobre as vinhas
e os telhados das casas
para que possa recrudescer
por um instante
o imenso poder da rasura
e do silêncio
nas páginas impressas
de todos os livros.

domingo, novembro 28, 2010

[novembro]

jcb

terça-feira, novembro 23, 2010

[Olhar por cima do ombro]

Olhar por cima do ombro e haver um dia antigo em que os animais deixaram no saibro dos estradões as linhas marcadas de ser o verão e existir o amor/
ou um outro feito de ferros enferrujados dos andaimes das obras das periferias como se mais nada valesse a pena depois das palavras que nem chegámos a dizer. Isso é tão pouco/
e é quase tudo: podermos olhar por cima do ombro e a memória devolver um dia de treva ou um dia da mais iluminada sombra. E ambos terem deixado no corpo as mesmas marcas imperecíveis.

segunda-feira, novembro 22, 2010

[o gato ilusionista interpõe recurso]

jcb


«o gato ilusionista interpõe recurso». 50x70 cm, acrílico sobre tela. Set 2010.

terça-feira, novembro 16, 2010

[as paisagens de Georges]

jcb


«as paisagens de Georges». 70x70 cm, técnica mista sobre tela. Nov 2010.

sábado, novembro 13, 2010

[degraus, patamar & queda]

jcb







«degraus, patamar & queda». 50x50 cm, técnica mista sobre tela. Set 2010.

[os pagadores de promessas]

jcb

«os pagadores de promessas». 70x50 cm, acrílico sobre tela. Nov 2010.

[a casa dos segredos]

jcb


«casa dos segredos». Marcador sobre toalha de papel. Nov 2010.

domingo, novembro 07, 2010

[a tríade e o agente secreto]

jcb


«a tríade e o agente secreto». Marcador sobre toalha de papel. Nov 2010.

sábado, novembro 06, 2010

[Kirchner em 1910]

jcb





«Kirchner em 1910: Franzie e Marcella», 80x60 cm. Acrílico sobre madeira de guarda-vestidos. Nov 2010.

[em vez da sombra]

jcb



«em vez da sombra». Marcador sobre toalha de papel. Nov 2010.

[os limites da literatura]

sei hoje
com a desilusão imensa de quem
suspeita ter perdido um rumo
ou o reconhecimento dos que nos lêem
que nenhum dos meus poemas sobre a crise e o orçamento
e muito menos os líricos publicados na revista criatura
deve ter influenciado assim de
modo particularmente decisivo
os relatórios
das agências de rating

sexta-feira, novembro 05, 2010

[dos naufrágios]

jcb



«dos naufrágios». Marcador e lápis de cor sobre toalha de papel. Nov 2010.

segunda-feira, outubro 18, 2010

[as sementes aladas]

cúmplices do vento

as sementes aladas
do ácer.

[antes]

antes
e depois da água

a nuvem.

[a luz reflectida]

e de súbito
no meio do deserto
apareciam casas

como se
houvesse casas
no meio do deserto.

sexta-feira, outubro 15, 2010

[regressar às mesmas coisas de sempre]

regressar às mesmas coisas de sempre
como se não existissem outras
como se pela exaustão nos fosse dado o obscuro
poder de queimar as palavras nos incêndios das florestas
e apenas um ou outro nome sobreviesse
um ou outro utensílio feito de matéria incombustível
para cozinhar os alimentos
ou recolher a água dos tanques.

sábado, outubro 09, 2010

[Um poema traduzido por Sun Iou Miou]

me rindo a la subjetividad.
¿de qué otro modo escribir informes
en un país de poetas?
cuando digo piedra todos comprenden nube
cuando digo nube todos comprenden piedra.
me rindo en fin a la subjectividad:
escribo nube porque quiero decir piedra
sabiendo que todos leen piedra
cuando escribo nube.



Tradução de Sun Iou Miou.

quarta-feira, outubro 06, 2010

[tão pequena forja]

tão pequena forja quase doméstica
de aquecer os metais
para dobrá-los.
num canto da garagem
entre parafusos a
que os óxidos retiraram as estrias
entre baldes de plástico
e restos de fasquias das obras
entre um amontoado de objectos sem uso

eu ficava a olhar o fogo
azul
às vezes cor de laranja
à espera da revelação dos astros.

domingo, outubro 03, 2010

[objectos antigos]

vê-se a distância que vai
da mão a estes objectos antigos
-- vê-se no modo como queremos proteger
o que já não usamos.

vê-se a distância a que ficou
de nós o que deixou de pertencer-nos
-- utensílios que a má-consciência de perdê-los
nos faz agora defendê-los por decreto.

sexta-feira, outubro 01, 2010

[regressar]

regressar às coisas simples:
à aritmética
ao odor das sementes esmagadas do ácer.

quinta-feira, setembro 30, 2010

[a claridade é obscura]

a claridade é obscura.
a objectividade é obscura.
exige-se a mediação da abstracção reveladora
para que as imagens verdadeiras nos sejam devolvidas
além e para lá do que os nossos olhos vêem.

terça-feira, setembro 28, 2010

[peço encarecidamente a intervenção do fmi]

peço encarecidamente a intervenção do fmi
não me parece que esteja em condições de garantir
os meus compromissos financeiros
no jantar de aniversário
de sábado
da ana ruiz
no ruizinho

mesmo que o caderno de encargos
me impeça no domingo de ir ao futebol
ou comprar o último
livro do zé luís peixoto

na bertrand.

[a natureza dos milagres]

o meu maior amigo
tinha o problema dos muitos interesses
por isso nenhuma das coisas o
levava nunca a elevados graus de motivação.
desinteressava-se das coisas em que se metia
por lhe interessarem todas as outras
em que não estava.
gostava tanto de tudo
que ao longo dos anos
foi desistindo de tudo.
eu
pelo contrário

tive apenas a única obsessão dos petroleiros.
desde a infância que coleccionava
estampas de navios de longo curso
e fotografias das chaminés de combustão.
não posso lamentar-me.
o meu trabalho e a minha vida
têm sido sempre
os petroleiros

o convés e a casa das máquinas
a vigia e o leme
o mediterrâneo e o atlântico
o porto de sines e a costa da nigéria
e a liberdade imensa de um horizonte sem palavras
nem a intromissão das legendas.
no mês passado

consegui que o meu maior amigo
me acompanhasse numa das viagens
ao golfo pérsico.
claro que se desinteressou ao segundo dia
(eu já imaginava)
a falar dos seus novos interesses
e da nostalgia das sucessivas desistências

e adormeceu todas as noites
quase morto de tédio
e já muito arrependido de ter embarcado
no meu tão imperecível petroleiro

em cuja sala de convívio
neste preciso momento
escrevo um poema sobre os sonhos da infância
e a natureza dos milagres.

sexta-feira, setembro 24, 2010

[as casas da várzea]

há muito tempo que tenho uma história para contar
e tenho vergonha de contá-la por ser verdadeira
tão verdadeira como eu estar aqui
e saber que as pessoas em regra
não acreditam em histórias verdadeiras.
as pessoas em regra acreditam
na prosa das mentiras.

eu era então uma criança.
e é claro que quase todos nós tão rapidamente
começamos a aprender a deixar de ser
aquilo que somos
para passarmos a ser
aquilo que julgamos que os outros
a um espelho poliédrico
julgam que somos.
não admira por isso mesmo
que não acreditemos nas histórias das crianças
e não admira que quase sempre seja necessário
colocarmos máscaras no rosto
para regressarmos à identidade
que ao longo do tempo perdemos.
e está portanto explicada a razão
de ter uma história verdadeira para contar
e temer que ninguém acredite
na minha história verdadeira.

pois é dar-se o caso de eu em criança
apanhar a camioneta da carreira
no largo do toural das boticas
a caminho de chaves.
mas os milagres precisam de tempo
e deslocamento do fulcro onde se sustenta
o quotidiano concreto das coisas.
e talvez por isso mesmo
só na viagem de regresso
esse já entretanto pressentido mistério
começasse em rigor os trabalhos
fabulosos da revelação.

na garagem da auto viação do tâmega
onde funcionavam também os escritórios subindo-se
uma escaleira sem guarda
havia um cheiro permanente a gasóleo
e uma bruma que vinha dos filmes a preto e branco
e um ruído de fundo de motores
que só muitos anos mais tarde viria a saber
que revertia da insânia do levante.

e logo começavam os milagres
em saindo a camioneta da carreira dos largos portões
da garagem do canto do rio
com esse rumor contínuo
a acompanhar-nos a viagem toda
e a ficar nos ouvidos durante a noite
até se desvanecer enfim às primeiras horas da manhã
e ser apenas já um murmúrio ou a sua reminiscência
o que vibrava ainda nos vidros
das janelas do quarto.

mas saindo da cidade
e abrindo as curvas muito fechadas até
à tipografia gutenberg
que nesse tempo ficava do outro lado da estrada
num pequeno anfiteatro virado às águas do tâmega

eu via que os homens
de súbito
voavam.

os homens que voavam
pareciam vir do lado das casas da várzea.
voavam numa lentidão inverosímil
os braços muito abertos e as pernas a quarenta e cinco graus
como naves alienígenas
suspensas da rarefacção dos fins de tarde
dos meses de junho.

o meu pai nunca compreendia
a razão de eu querer ficar no banco corrido de trás
o mais desconfortável
e sujeito à oscilação de enjoo das molas oscilatórias
da camioneta da carreira:
mas só assim podia ainda quedar-me
de olhos colados ao imenso vidro traseiro
a ver os homens da várzea
a desaparecer na distância
voando sobre a veiga de chaves
tocando com as mãos na copa dos salgueiros
e dos amieiros
incendiados pela reverberação
das seis e meia.

eu próprio cheguei a duvidar
das imagens antigas da infância
e dessa memória que ao longo dos anos
repercutiu nos meus sonhos.

a verdade é que no passado dia vinte e três de agosto
numa segunda feira do ano de dois mil e dez
ao fim da tarde
quase quarenta anos depois do
episódio a que faço ingloriamente referência
por saber que ninguém no mundo em que vivemos
acredita em histórias verdadeiras

ia eu de carro a caminho de chaves
e vi claramente visto
com estes dois que só a terra haverá de comer
um homem e uma mulher
suspensos à luz rasa do crepúsculo
voando sobre os campos da veiga.

vinham ambos do lado das casas da várzea
e a mulher tinha um vestido de um amarelo tão intenso
que eu estou que o resto da minha vida
não será bastante
por longa que seja
para ofuscar na memória
o halo dessa tão intensa e concreta
revelação dos milagres.


[originalmente publicado aqui: http://chaves.blogs.sapo.pt/]

quinta-feira, setembro 23, 2010

[regresso da Guerra de Tróia]

regresso da Guerra de Tróia
e não sei que fazer
da merda deste Cavalo
que não me cabe em lado
nenhum.

[a flor da volúpia]

a flor da volúpia
(que mal a vemos hoje
que parece mal)
atravessou uma boa parte da literatura do século xix.
tem exactamente sete pétalas
e ninguém a reconhece como sua.
era preciso
(como custa repeti-lo)
um obscuro poeta das periferias
vir assim recuperá-la no nosso tempo
para que não ficasse escondida e incógnita
nos herbários dos museus
da Rua da Escola Politécnica.
é caso para perguntar
o que anda a fazer a crítica literária
deste meu
tão
pobre país
tão
culto.

[venho para te salvar]

venho para te salvar.
trago um velho helicóptero em segunda mão
e
(porque será preciso içar-te do rasteiro chão)
uma corda de esparto
da minha terra.
não te preocupes.
nunca deixei ninguém
em território inimigo
(independentemente da precariedade dos meios aéreos)
sempre que levei comigo
a corda de esparto
da minha terra.

quarta-feira, setembro 22, 2010

[«não espero nada do mundo»]

«não espero nada do mundo»
dizia o meu amigo poeta decadentista
muito displicente
muito dado à cerveja e à exaltação do comezinho
desde que leu a antologia
(que lhe emprestaram e não devolveu)
do Manuel de Freitas.
e alguém que perdesse tempo a explicar-lhe
que bem fodido estava o mundo
se esperasse mais dele
do que ele esperava do mundo.

[oiçam como eu suspiro]

oiçam como eu suspiro:
ai.
a minha poesia
em finais da primeira década do século xxi
haja embora opiniões contraditórias
é de um lirismo comovente.

[no país dos narcóticos]

no país dos narcóticos
lembro-me de pedir um copo de água
e ficarmos todos ganzados.

[rendo-me à subjectividade]

rendo-me à subjectividade.
de que outro modo escrever relatórios
num país de poetas?
quando digo pedra todos compreendem nuvem
quando digo nuvem todos compreendem pedra.
rendo-me enfim à subjectividade:
escrevo nuvem porque quero dizer pedra
sabendo que todos lêem pedra
quando escrevo nuvem.

segunda-feira, junho 28, 2010

PAUSA

Quando se anda em serviços mínimos, e mesmo esses começam a falhar, recomenda-se uma pausa até poder ser retomada alguma normalidade. O blog, portanto, fecha por uns tempos. Com um agradecimento e um pedido de desculpas, sobretudo aos que passam por aqui com alguma regularidade. Até breve.

quarta-feira, junho 23, 2010

[o que é dos livros]

Estás sentado de frente
para a montra de vidro
do café. Vês a rapariga de jeans
a atravessar a passadeira
do outro lado do vidro
e procuras adivinhar
uma vida por detrás
dum rosto: uma infância, um rio,
o amor, uma dança
a meio da noite. Ela pára
no passeio, suspeitas
que te olha nos olhos, imaginas
que se decide a entrar
e a sentar-se a teu lado.

Estás sentado de frente
para a montra de vidro
e deixas o romance
a meio do capítulo IX.
Ergues o olhar e olhas a rua: lá fora
uma rapariga de jeans
atravessa a passadeira
do outro lado do vidro

e por um instante
não compreendes o que é
do mundo, o que é dos livros.

sexta-feira, junho 18, 2010

[algumas cidades muito bem explicadas ao luís por mor dos títulos dos poemas]

TODAS AS CIDADES

As cidades não têm nada por si mesmo
as cidades são sobretudo
o que lá deixamos.


PARIS E AS IMEDIAÇÕES DA ÓPERA

Que mal empregadas
esplanadas
quando não estás.


LEMVIG E A ÁGUA

Como explicar
que este poderia ter sido
para sempre o meu lugar.


ROMA E AS RUÍNAS DO IMPÉRIO

Assim de repente
quase me pareceu o teu nome em latim
gravado na pedra.


LISBOA E A QUESTÃO SOCIAL

A greve da Transtejo
de uma a outra breve margem
separa-nos para sempre.


MIRANDELA E UMA TARDE DE SÁBADO

Sem este espelho de água
o que seria hoje
de nós.


COPENHAGA E A PRIMAVERA

Oferecer uma rosa
à jovem de olhos de nuvem
que vendia flores.


ANTIGUA GUATEMALA E OS DESASTRES

Assim lá estivesses 
o vulcão
era o menos.


MAPUTO NA ZONA ALTA

A embaixada 
e o tédio da secretária da embaixada
de ter numa tarde 

tão quente
perdido uma partida
de golfe.


LATINA E O AMOR

E quem nessa tarde Maria Manuel
me haveria de recordar o famoso edifício
com o M de Mussolini?


FLORENÇA E AS MÁQUINAS FOTOGRÁFICAS

Em vez da polícia
fumar um cigarro na varanda
do Palazzo Vecchio

e ser 
apanhado 
pelos japoneses.


CHAVES E O TEMPO

Percorro hoje os corredores do Liceu
como o único lugar do mundo
onde nunca estive.

[e quase não haver]

E quase não haver um verso
para acolher a luz demorada a meio da tarde
nas folhas das amendoeiras jovens.

[quase tudo]

Quase todas as coisas
a cal das paredes
a água parada nos tanques.

[ainda o amor]

Tão demorada semente aérea 
a cair em elipse:
o teu nome desse tempo.

[romance]

Barco de vagas
repetindo as palavras
em vez do vento ou da água.

[jogos olímpicos]

Fotografias antigas:
o dilema das falsas
partidas.

quinta-feira, junho 10, 2010

[Testamento de M. L.]

Deixo-te
todos os meus bens
estas páginas de rascunho
dos incêndios
das florestas.

[O capitalismo e a infância]

O sol deixou de entrar na minha rua
a luz deixou de poisar nas folhas dos freixos dos quintais
um espesso lençol de sombra cobriu as paredes
e os telhados das casas
foi quando construíram as
avassaladoras chaminés da fábrica de rebuçados
chaminés imensas
erguendo-se sobre o horizonte como
catedrais góticas
ou torres de palácio de fábula

é assim quando 
o capitalismo e a infância se misturam
eu é que nunca mais na minha vida
pude ver as guloseimas.

[A memória do Verão]

Nos cafés da província
nas mesas de resina das esplanadas
nesse espaço de circulação
entre o jogo das damas e os copos de cerveja
o Verão é ainda a haste mais insustentável
das páginas dos livros.

Como numa história de romance
as ervas azuis dos venenos
misturavam-se
ao aroma antigo das araucárias
da praça

bebíamos 
como se pudéssemos ficar para sempre
com a memória do Verão
agarrada
à inevitabilidade
de não podermos
deixar de ser jovens.

terça-feira, junho 08, 2010

[Ausências, 3]

jcb
Rio Mousse.

[Ausências, 2]

jcb
No Rio Mente.

[Ausências, 1]



Diários.

quarta-feira, junho 02, 2010

[Às vezes o poema]

Às vezes o poema deveria
apenas ser uma vereda de silvas
uma cicatriz indelével de palavras.

[Não escrever]

Não escrever a palavra cal
não escrever a palavra azul
rasurar até não ficar uma sílaba.

domingo, maio 30, 2010

[Dois Poemas de Ivana Pavlek]

um.

Espera meu amor
estou na cozinha
tenho um horário fodido
a crise é uma coisa abstracta muito
bonita que ameaça o meu emprego no restaurante
não me olhes como se fôssemos a um
espectáculo de dança clássica quando
acabar os bifes
não tenho pachorra eu
quero é sair da grelha
e chegar a casa
e adormecer
a sonhar com os astros.


dois.

Eu sei que me amas
eu sei que sou a tua admirável princesa
eu sei que desejas sobre todas as coisas
acariciar a minha pele
como se pudesses tocar uma constelação de
luzes imensas
mas deixa-me respirar meu amor
deixa-me ser a anónima empregada do restaurante
por breves instantes
além dos teus ombros e das tuas mãos 
desampara-me a loja
vai ver se chove meu amor
quando chegar a casa depois do turno da noite
e só me apetecer 
dormir.

quinta-feira, maio 27, 2010

[Pequenas coisas]

Pequenas coisas
a nuvem
a água das nascentes
a cal nas paredes exteriores
o vento nos ramos das árvores
quase nenhuma palavra
o exercício de mover as contas do ábaco
na transmissão dos usos.

segunda-feira, maio 24, 2010

[Jardins Reais, 3]

Nenhum
eixo de simetria
resiste ao exercício
quase secreto
das raízes e dos ramos
dos cedros do Líbano
a estenderem-se
sobre os labirintos
e os caminhos
de saibro.
Nos projectos dos jardins
(no sonho de os erguer
como espaço
contrário
à natureza envolvente)
é o Tempo
o mais imperativo e decisivo
elemento.

[Jardins Reais, 2]

jcb

[Jardins Reais, 1]

jcb


domingo, maio 23, 2010

[Depois do Verão]

Deixavam as bicicletas na praia
caminhavam nas dunas a sentir a passagem do tempo
nas nuvens de cinza
no modo 
como as areias são arrastadas pelo vento
desenhando um ondulado 
roubado 
às vagas sucessivas
do levante.

Deixavam as bicicletas
como se pudessem não as encontrar de novo
como se fosse possível ficar para sempre
no labirinto dos meses depois do Verão

até perder-se a chave de casa
e a memória do que
nem chegámos a ser.

sábado, maio 22, 2010

[Escolhia as folhas]

Escolhia as folhas do
loureiro imunes ao relâmpago
a vagarosa elipse da semente do ácer
as represadas águas dos açudes
a mobilidade apenas do olhar

como se lhe fosse dado o fabuloso
e intangível e pacificado
poder das inércias.

terça-feira, maio 18, 2010

[Quase não se ouvia]

Quase não se ouvia sobre os telhados
esse vento 
dos primeiros meses
a desatar os nós dos fios 
a desarrumar as 
pedras das amuradas

tanto é às vezes o
que separa a lentidão e o erro
a glória e o talento.

segunda-feira, maio 17, 2010

[O que procuramos]

O que procuramos
é a incerteza ou a obscuridade
o rosto que está por detrás do rosto
a palavra além da palavra
o segredo das mesas
de jogo quando vamos
no escuro.

Foi num dia de Novembro igual
a quase todos os dias de Novembro
partimos por estradas secundárias
sabemos hoje que algumas
das vitórias
são a melhor evidência
dos naufrágios.

domingo, maio 16, 2010

[Nunca digas]

Nunca digas
«é tarde»

livra-te dos perigos
da redundância.

[Quero também regressar]

Quero também regressar
mas deixar
de lado a imagem
da luz poisada
nos pátios. 

Anoitecia cedo
era já depois do Verão
tu acendias o lume
como se alguém pudesse aparecer
e trazer
de longe
o livro
das perguntas.

[Estávamos desprotegidos]

Estávamos desprotegidos
tínhamos quase tudo
um território imenso separava-nos
dos afectos
nenhum mapa nos guiava pelos caminhos de asfalto
riscados a meio da noite
nas curvas de nível
das florestas.

Uma coisa apenas nos faltava
lembro-me:
a consciência de que
tínhamos quase tudo.

quarta-feira, maio 12, 2010

[Agora a sério, a Poesia]





A aparição de uma corça no Rio Mente, zona de Pejas, às 16:40 h do dia 10 de Maio de 2010.
Fotografias de Manuel João Vilanova.

[7: Ainda uma última versão]

Em nenhum livro de versos
deixes poisar
a vagarosa nuvem
dos consensos.

[6: Outra versão]

O poema
ou é o barco carregado de pérolas
a ir ao fundo
ou não é nada.

[5: Outra versão]

para MF

É na simetria
e na tijoleira dos pátios
ou na iluminada cal
que começa a poesia:

entre o azul e a pedra
da água; entre
a migração eluvial
e a nascente.

O resto é coisa
de geração nova
que confunde o verso
com a prosa.

[4: Outra versão]

Nem um remo estendas
nem um leme
ao barco dos naufrágios.

[3: Outra versão]

Antes os vidros debaixo da língua
ou as cápsulas
de estilo
dos venenos de água.

terça-feira, maio 11, 2010

[2: Outra versão]

Em vez da simetria
é a desordem natural das coisas
o que mais leva ao poema.
Ou a usura e a arbitrariedade
da pedra disparada
contra o remanso
dos açudes dos livros.

segunda-feira, maio 10, 2010

[Obviamente tudo isto]

Pouco poderá ser o que leva ao poema se não
for a desordem natural das coisas. À simetria
ou à claridade extrema de um céu azul
só deveria ser dado entrar nos versos por
oposição à injustiça de poderes
devassados. De qualquer modo: em
vez de loa aos remansos
antes o poema ao serviço
da usura: onde possamos
abrir a cicatriz da intranquilidade
ou adormecermos vencidos de já nos
bastar a deserção.

Obviamente tudo isto se
o poema obedecesse a uma regra de estilo.

[Tudo é um novelo]

É antes do povoamento
que o povoamento
começa? Na água ou na aluvião
ou nos relevos

que levam a uma
e não outra realidade
territorial?
Nos bosques densos de caducifólias

laboriosos animais enterram
no húmus as folhas pretéritas
da mesma

transformada
terra vegetal.
Que correspondência existe

entre os muros
das propriedades
e as paredes das casas
e esta antiquíssima

matéria inflamável?
Uma criança
corre a caminho dos largos
e ergue a sua voz

como um clamor
a invocar os astros
na manhã de cinza.

Tudo é um novelo indecifrável
de relações que ligam tudo
a coisa nenhuma?

quinta-feira, maio 06, 2010

[O Verão quente]

Ficaram primeiro rendidos ao fascínio das frases,
à melancólica exultação das pausas, à capacidade
de evocação de coisas e lugares. Foi no ano em
que as águas desceram até às curvas de nível
da raiz do junco e os retornados ergueram nos
pátios o desenho das periferias urbanas,
as fasquias e os caixotes de contraplacado,
os panos de tenda, as tábuas encostadas
às paredes de cimento dos anexos. Em cima dos
palcos, nas varandas, nos muros dos tanques,
os acrobatas ágeis moviam archotes e
iluminavam as plateias com o fascínio das frases.
Os altifalantes do largo, a música das fitas de
plástico e a cerveja a correr nos balcões metálicos
dos bares, os discursos na escola primária,
os cartazes afixados na porta dos armazéns
ou distribuídos à mão em dias de mercado. E só
depois o Verão. E eles rendidos ao lume
avassalador dos archotes, ao fascínio das frases.

[w. in prog.]


quarta-feira, maio 05, 2010

[Como se lhe fosse permitido tanto]

Como se lhe fosse permitido tanto: perder
tudo: um nome os bens uma reputação 
uma biografia e estar isento 
da compaixão.

[Os teus amigos enviam mensagens a gabar os versos]

Olhas os guindastes das obras esse
movimento quase perfeito da economia
a construir a sua tão densa e apertada teia não chove
há quase uma semana isto não deve

estar ainda devidamente estudado a meteorologia
às vezes parece uma ciência vacilante à procura
de objecto. Despedimentos: a arte valoriza-se nos mercados
quando os guindastes ficam parados como catedrais

suspensas da evolução das margens de lucro os
teus amigos enviam mensagens a gabar os versos
a dizer que curiosamente estão a aprender
a gostar de poesia lá vêm de novo as nuvens

desenhadas no mapa das previsões logo
vi. O melhor é desarmá-los não vá o consenso
e a falta de obscuridade metê-los a todos e mal que ficavam
no retrato de mãos dadas com a lírica.
[Acrílico sobre madeira. 2.20*0.50 m]



terça-feira, maio 04, 2010

[Também eu quero tanto ser um poeta moderno]

Juro que nunca
mais escrevo pedra
nem álamo.

domingo, maio 02, 2010

[Chamo-me Luísa]

Chamo-me Luísa. Sou uma personagem de ficção. Devem conhecer-me, pelo menos, do Primo Basílio. Mas sou também a drª Luísa Fragoso duma novela reles do Manuel Arouca, a Maria Luísa dum romance notável e esquecido de José Lins do Rego, a mulher do conto do Onésimo que saiu dos Açores na ilusão de que é possível fugir ao destino que o acaso nos ditou, a personagem obscura ou exaltante de um outro livro cujas páginas nunca te será dado leres. Já fui concubina e princesa, criada de servir, engenheira electrotécnica, assalariada rural no Alentejo. Já vivi no Iémen, numa cidadezinha da Bretanha rodeada por um bosque, em Angra do Heroísmo, em Portimão. Já fiz de tudo. Só nunca fiz de mim mesma. E por isso nunca soube o que era (de facto) acordar ou sentir o desejo ou o cheiro da terra molhada, ter frio, ter medo, amar, ser feliz. É verdade que já caminhei sobre o fogo, que já morri, que já ressuscitei, que já fui condenada ao degredo, que já conheci a glória, que já traí, que já dormi no deserto, que já fui heroína numa batalha em que os guerreiros mais corajosos acabaram por desertar. Mas fui sempre, senti sempre, por interposta pessoa. Por isso chego a pensar que trocaria tudo, sei lá, por um instante em que pudesse (de facto) sentir. Podia ser a dor, tudo bem. A dor que me trouxesse as lágrimas mais concretas. E que essas lágrimas me corressem na cara, sim, mesmo que então me descobrisse a mais desgraçada das mulheres à face da terra.

sexta-feira, abril 30, 2010

[Fronteira]

Sim: não desconhecia que às vezes é muito estreita a fronteira que separa as muralhas e as ruínas.

quarta-feira, abril 28, 2010

[Um livro]

Uma jovem desapareceu nas imediações de Tavira no comboio que saiu de Faro ao fim da tarde a caminho de Vila Real de Santo António no dia 22 de Dezembro de 2009. O revisor (que permanece internado no Hospital Distrital num estado de apatia interrompido por momentos duma perturbante lucidez) garante que ela segurava na mão esquerda um livro de Constantino Paustovsky, de capa cor de laranja, intitulado «Chuva na Madrugada»; que a jovem desapareceu no instante preciso em que ele lhe devolvia o bilhete e lhe desejava boa viagem; e que nesse instante preciso é como se o sol, a sua luz imensa, se tivesse despenhado na Ria Formosa enquanto uma súbita labareda muito azul se desprendia da ligeira ondulação das suas águas.


[Originalmente publicado em http://umpoucomaisdesul.blogspot.com]

terça-feira, abril 27, 2010

[As páginas dos romances]

Arriscávamos o salto mortal
voando com uma venda nos olhos
dos andaimes para o monte de areia da póvoa.
As obras da escola eram a nossa perdição:

as fasquias de alumínio, o ondulado de luzalite
das coberturas, o entulho, o ressalto
exacto do encaixe das tijoleiras, o pó quase de talco
dos sacos de cimento da cimpor. Nos sábados

à tarde erguíamos muros no combarro com tijolo
de quinze, marcávamos com estacas de pinho
o perímetro exterior do pavilhão, ligávamos a betoneira
a olhar em sobressalto os movimentos oscilatórios

do balde. Penso que era assim. Às vezes
pergunto o que fica dos livros, o que pertence
e não pertence à literatura, o que acrescentaram
à nossa vida as páginas dos romances.

segunda-feira, abril 26, 2010

[Um diário antigo: das notas de A. S., 1]

É sobretudo silêncio o que ficará de todos estes anos. Mas à ignomínia nada há-de dever tanto como saber-se um dia que nos apagámos de nós; que chegámos a nem responder quando alguém nos chamava pelo nome.

domingo, abril 25, 2010

[As barragens, 3]

Foto: MJV (em telemóvel). Março 2010.



Estes são (ainda) os rios.

[As barragens, 2]

Custa apenas saber
que a ignorância 
e também (ou sobretudo) os interesses
é que farão subir 
a esta cota as águas do rio

e não o curso das nascentes 
ou a nuvem
ou o modo como 
nos talvegues se desenham (e inscrevem) 
as vertentes das encostas.

sábado, abril 24, 2010

[25: uma fotografia antiga]


jcb

[As barragens, 1]


Fotografia: MJV

sexta-feira, abril 23, 2010

[Fragmento]

... precisava de um espaço onde o ruído do mundo ficasse do lado de fora das paredes das casas. Procurava encontrar-se; procurava, portanto, o contrário da solidão.

quinta-feira, abril 22, 2010

«Tão raro»

Tão raro é o tempo no jardim
que os pássaros não cantam
só de olhos fechados voam.


poema de leitor; enviado por mail.

Dos leitores

Alguns leitores usam o mail em vez das caixas de comentários. Mas raramente nos enviam poemas. E mais raramente, enviando-os, nos surpreendem; como é agora dar-se o caso. Por isso, na entrada imediatamente acima, segue o poema de um leitor – que o escreve no contexto temático das mais recentes entradas.

[Demasiado tarde]

Demasiado tarde descobriu que
o fio de Ariadne
era o próprio labirinto.

quarta-feira, abril 21, 2010

[O paraíso perdido]

O jardim («a que outros 
chamam paraíso») 
é construído contra o quotidiano
e o deserto. Com

a certeza de que nunca perdemos
o que um dia
tanto nos pertenceu.

[entre a casa e os jardins]

jcb

[Uma fotografia antiga do Rio Tâmega e do Bairro da Madalena]

i.
O barco está errado: o fotógrafo
(anónimo?) o terá pressentido no exacto momento
do disparo. A vela, esse belíssimo triângulo
isósceles, deveria inscrever-se no estrito
espaço escuro entre as duas casas
e separar-se dos elementos verticais do fundo
de que acaba por parecer
fazer parte: ligeiramente mais à direita.
E o seu reflexo na água, assim,
cortaria a mancha de sombra
como uma afectuosa cicatriz ténue.

ii.
Há um momento de angústia: esse em que o fotógrafo
acredita ter-se encontrado ele mesmo
com o momento único e irrepetível.
O autor deste retrato o pressentiu
por um instante: mas disparou tarde: quando
já o barco avançara. Bem certo é
que chegamos quase sempre tarde
às coisas perfeitas que nos esperam.

iii.
O jovem está errado: há uma identidade
que se perde, uma individualidade
que se esbate: a sombra vertical
de uma das árvores, reflectida no rio, não deveria
tocar a sua cabeça e misturar-se nela.

iv.
O barco e o observador são apenas um
e mesmo elemento da composição: o barco
não existe sem o jovem que o surpreende
num lento movimento à superfície
das águas; e o olhar do jovem não existe
sem a imagem de espelho devolvida
aos seus olhos pela vela muito branca, leve,
esguia, quase imaterial.

v.
O círculo e o quadrado de luz, à direita,
sob o último arco da ponte, estão
errados: rasuram o fulgor da estreita linha
iluminada do tronco da árvore em primeiro plano:
como se a não deixassem erguer-se inteira
para o céu do fim de tarde;
como se lhe impedissem a delimitação
da pressentida fronteira; como se o fogo irrompesse
por dentro da fotografia
onde mais não deveria existir
que um lume vagaroso.

vi.
Tudo o mais está certo: a ponte
que parece continuar para onde já não está
à força de aterros sucessivos
e alicerces; o volume dos edifícios num dinâmico
equilíbrio de vãos e coberturas, empenas
cegas, trapézios; e o rio,
claro, que vem de Espanha
e resiste aos erros de um retrato em que,
como quase sempre, não foi possível unir o tempo
e os fios todos
das múltiplas variáveis em jogo.


(Poema originalmente publicado aqui: http://chaves.blogs.sapo.pt)

segunda-feira, abril 19, 2010

[Os jardins]

Nunca ninguém 
no exílio o ouviu lamentar-se 
dos desastres: a rasura das fronteiras
ou a distância 
a que ficaram os frisos de cedro,
os azulejos dos palácios, a água
rumorosa dos tanques, 
a tão concreta e abstracta 
geometria

dos mosaicos dos pátios.
Num último momento
falou apenas dos jardins: do perfume
das laranjeiras em Abril.

[quase os jardins]

jcb




[Palácio Bahia.]

[O que trazemos das cidades]

1.
É o que trazemos 
(tanto) das cidades: o empedrado 
largo da pequena praça, 
um rosto, a rua dos bares
onde o lixo é recolhido de manhã,
o milagre de uma promessa ou um nome
anotados em guardanapos de papel
nas mesas das esplanadas.

2.
A senhora 
da agência de viagens, já 
em desespero, insistia 
no arquipélago das Quirimbas, 
nas pirâmides 
e um jantar 
no Cairo à luz das velas, numa pescaria
no Bósforo, num programa
de seis noites no deserto
com os tuaregues. Mas
eu queria apenas fumar de novo 
um cigarro na varanda do Palazzo Vecchio
depois de quatro longas horas
de comunicações
sobre a requalificação 
das periferias urbanas. E 
isso não tinha.

3.
Na avenida,
sob as araucárias, chovia
e não havia um táxi.

sexta-feira, abril 16, 2010

[uma nuvem de cinza]

1.
encostas os teus olhos de fogo
à matéria
combustível

e uma nuvem
de cinza
cobre a europa

2.
é uma evidência desconcertante:
os teus olhos
fecharem os aeroportos

quinta-feira, abril 15, 2010

[a glória e o reconhecimento]

sei que devo ter cuidado
isso mo diz o Amigo de modo singular
lembrando-me que a glória e o reconhecimento são vacas muito esquivas
que não posso dar-me ao luxo de escrever sobre o João Moutinho
um poeta como eu que até começava a ser considerado
em lisboa. e eu que sim
contrito a lamentar-me enquanto lia as
seis páginas dele com as apreciações ao resumo da assírio
de perder assim as noites a ver jogos de bola e
a beber cerveja
e a invectivar arbitragens provavelmente sem que
a razão inteira esteja do meu lado
a citar a despropósito o dias da cunha e
as conversas sobre o sistema
a não escrever uma linha que se diga benza-te deus
e possa acrescentar um módico de mérito
ao que um dia escrevi.

quarta-feira, abril 14, 2010

terça-feira, abril 13, 2010

[5 poemas do derby]

1: Isto começa ligeiramente a irritar-me

Não há ninguém
que dê ao Moutinho
um alfinete de dama
de modo a não estar a
braçadeira de capitão sempre
a descair-lhe
distraindo-se assim o moço de
ter que puxá-la
procurando pô-la
sistematicamente
no sítio?


2: A chuva

(Nota: poema escrito entre os 47 e os 65 minutos de jogo ou de como se vê o quanto é certo o popular ditado algarvio que diz não limpes o cu antes de cagar.)

Dei uma volta
pela Venda Nova um pouco
antes do jogo a ver (assim o suspeitava)
as ruas já desertas como
se houvesse uma revolução e
os militares decretassem
o recolher obrigatório. Também
eu (não tardou) haveria
de sentar-me em frente à TV
e aqui estou depois do intervalo
a rir-me de mim
e de todos mas
sobretudo dos que pagaram
bilhete e foram ao estádio da Luz
com bandeirinhas vermelhas
a apanhar chuva e
a acenar ao boneco.


3: Nós é mais pelos vistos o meio da tabela

O Benfica a
jogar assim estaria ao intervalo
a levar dois zero
do Desportivo 
de Chaves. Mas calhou-lhe
em sorte
o meu Sporting
a evoluir no relvado
um cibo
(como hei-de dizer isto?)
fracote.


4: Isto dos apitos

Ai
que ladrão!


5: Enfim

É claro
se formos a ver
eu sei
isto é
sobretudo
dor 
de cotovelo.

[não é não temer]

Não é não temer  
a morte (dizia)  
mas a incompreensão  
de que possa ser de outro modo  

o sentirmo-nos vivos  
que não seja  
a morte não fazer sentido.  
Vocação que me não foi  

dada: defender-me dessa  
abstracção que a poder tocar-me  
não haveria de tocar  

senão o que  
em mim já não era  
e não poderia nunca ter sido.

segunda-feira, abril 12, 2010

Poesia Ilimitada

Uma nota no Poesia & Lda., aqui, a propósito de escolhas, com um poema de António Cabral e tudo:

OS NOSSOS GOVERNOS

Numa coisa os nossos governos têm sido escrupulosamente
cristãos: mantêm a agricultura pobre para cumprir a profecia de
Cristo que diz: pobres sempre os tereis convosco.

domingo, abril 11, 2010

[em voo]

menor que o de todas as suas penas
é o peso 
do pássaro em voo

[10 de Abril em Moreanes]

Devem estar marcadas eleições 
intercalares em Mértola 
para a Junta de Freguesia: uma carrinha 
com altifalantes e doze 
militantes de prospectos 
lutavam (quase me pareceu 
em vão) na manhã de sábado 
contra a indiferença das casas 
e dos largos. A caminho de Moreanes 
era ainda o som da propaganda 
que teimava em erguer-se 
abrindo-se o vidro do carro 
a deixar entrar o odor misturado 
dos matos. Mas depois esperava-nos 
na casa de pasto do Pires 
a exposição anual 
de pintura: o Rico Sequeira 
a relembrar a importância decisiva 
de Weimar para a história 
da civilização, o Eurico 
a falar da estranha ética 
de Tóquio, a perdiz 
da Graça Morais pendurada 
numa parede de cal, o António 
Inverno a trazer o seu sorriso 
de criança às mesas 
da esplanada. O certo é 
que a lampreia e o cozido de grão e 
os vinhos do Alentejo 
ocuparam quase sempre o 
lugar que estaria reservado 
às artes e à reflexão 
sobre as imperfeições do mundo.

terça-feira, março 30, 2010


[Fonte: Caderno de desenhos de Geninha]