sexta-feira, abril 30, 2010

[Fronteira]

Sim: não desconhecia que às vezes é muito estreita a fronteira que separa as muralhas e as ruínas.

quarta-feira, abril 28, 2010

[Um livro]

Uma jovem desapareceu nas imediações de Tavira no comboio que saiu de Faro ao fim da tarde a caminho de Vila Real de Santo António no dia 22 de Dezembro de 2009. O revisor (que permanece internado no Hospital Distrital num estado de apatia interrompido por momentos duma perturbante lucidez) garante que ela segurava na mão esquerda um livro de Constantino Paustovsky, de capa cor de laranja, intitulado «Chuva na Madrugada»; que a jovem desapareceu no instante preciso em que ele lhe devolvia o bilhete e lhe desejava boa viagem; e que nesse instante preciso é como se o sol, a sua luz imensa, se tivesse despenhado na Ria Formosa enquanto uma súbita labareda muito azul se desprendia da ligeira ondulação das suas águas.


[Originalmente publicado em http://umpoucomaisdesul.blogspot.com]

terça-feira, abril 27, 2010

[As páginas dos romances]

Arriscávamos o salto mortal
voando com uma venda nos olhos
dos andaimes para o monte de areia da póvoa.
As obras da escola eram a nossa perdição:

as fasquias de alumínio, o ondulado de luzalite
das coberturas, o entulho, o ressalto
exacto do encaixe das tijoleiras, o pó quase de talco
dos sacos de cimento da cimpor. Nos sábados

à tarde erguíamos muros no combarro com tijolo
de quinze, marcávamos com estacas de pinho
o perímetro exterior do pavilhão, ligávamos a betoneira
a olhar em sobressalto os movimentos oscilatórios

do balde. Penso que era assim. Às vezes
pergunto o que fica dos livros, o que pertence
e não pertence à literatura, o que acrescentaram
à nossa vida as páginas dos romances.

segunda-feira, abril 26, 2010

[Um diário antigo: das notas de A. S., 1]

É sobretudo silêncio o que ficará de todos estes anos. Mas à ignomínia nada há-de dever tanto como saber-se um dia que nos apagámos de nós; que chegámos a nem responder quando alguém nos chamava pelo nome.

domingo, abril 25, 2010

[As barragens, 3]

Foto: MJV (em telemóvel). Março 2010.



Estes são (ainda) os rios.

[As barragens, 2]

Custa apenas saber
que a ignorância 
e também (ou sobretudo) os interesses
é que farão subir 
a esta cota as águas do rio

e não o curso das nascentes 
ou a nuvem
ou o modo como 
nos talvegues se desenham (e inscrevem) 
as vertentes das encostas.

sábado, abril 24, 2010

[25: uma fotografia antiga]


jcb

[As barragens, 1]


Fotografia: MJV

sexta-feira, abril 23, 2010

[Fragmento]

... precisava de um espaço onde o ruído do mundo ficasse do lado de fora das paredes das casas. Procurava encontrar-se; procurava, portanto, o contrário da solidão.

quinta-feira, abril 22, 2010

«Tão raro»

Tão raro é o tempo no jardim
que os pássaros não cantam
só de olhos fechados voam.


poema de leitor; enviado por mail.

Dos leitores

Alguns leitores usam o mail em vez das caixas de comentários. Mas raramente nos enviam poemas. E mais raramente, enviando-os, nos surpreendem; como é agora dar-se o caso. Por isso, na entrada imediatamente acima, segue o poema de um leitor – que o escreve no contexto temático das mais recentes entradas.

[Demasiado tarde]

Demasiado tarde descobriu que
o fio de Ariadne
era o próprio labirinto.

quarta-feira, abril 21, 2010

[O paraíso perdido]

O jardim («a que outros 
chamam paraíso») 
é construído contra o quotidiano
e o deserto. Com

a certeza de que nunca perdemos
o que um dia
tanto nos pertenceu.

[entre a casa e os jardins]

jcb

[Uma fotografia antiga do Rio Tâmega e do Bairro da Madalena]

i.
O barco está errado: o fotógrafo
(anónimo?) o terá pressentido no exacto momento
do disparo. A vela, esse belíssimo triângulo
isósceles, deveria inscrever-se no estrito
espaço escuro entre as duas casas
e separar-se dos elementos verticais do fundo
de que acaba por parecer
fazer parte: ligeiramente mais à direita.
E o seu reflexo na água, assim,
cortaria a mancha de sombra
como uma afectuosa cicatriz ténue.

ii.
Há um momento de angústia: esse em que o fotógrafo
acredita ter-se encontrado ele mesmo
com o momento único e irrepetível.
O autor deste retrato o pressentiu
por um instante: mas disparou tarde: quando
já o barco avançara. Bem certo é
que chegamos quase sempre tarde
às coisas perfeitas que nos esperam.

iii.
O jovem está errado: há uma identidade
que se perde, uma individualidade
que se esbate: a sombra vertical
de uma das árvores, reflectida no rio, não deveria
tocar a sua cabeça e misturar-se nela.

iv.
O barco e o observador são apenas um
e mesmo elemento da composição: o barco
não existe sem o jovem que o surpreende
num lento movimento à superfície
das águas; e o olhar do jovem não existe
sem a imagem de espelho devolvida
aos seus olhos pela vela muito branca, leve,
esguia, quase imaterial.

v.
O círculo e o quadrado de luz, à direita,
sob o último arco da ponte, estão
errados: rasuram o fulgor da estreita linha
iluminada do tronco da árvore em primeiro plano:
como se a não deixassem erguer-se inteira
para o céu do fim de tarde;
como se lhe impedissem a delimitação
da pressentida fronteira; como se o fogo irrompesse
por dentro da fotografia
onde mais não deveria existir
que um lume vagaroso.

vi.
Tudo o mais está certo: a ponte
que parece continuar para onde já não está
à força de aterros sucessivos
e alicerces; o volume dos edifícios num dinâmico
equilíbrio de vãos e coberturas, empenas
cegas, trapézios; e o rio,
claro, que vem de Espanha
e resiste aos erros de um retrato em que,
como quase sempre, não foi possível unir o tempo
e os fios todos
das múltiplas variáveis em jogo.


(Poema originalmente publicado aqui: http://chaves.blogs.sapo.pt)

segunda-feira, abril 19, 2010

[Os jardins]

Nunca ninguém 
no exílio o ouviu lamentar-se 
dos desastres: a rasura das fronteiras
ou a distância 
a que ficaram os frisos de cedro,
os azulejos dos palácios, a água
rumorosa dos tanques, 
a tão concreta e abstracta 
geometria

dos mosaicos dos pátios.
Num último momento
falou apenas dos jardins: do perfume
das laranjeiras em Abril.

[quase os jardins]

jcb




[Palácio Bahia.]

[O que trazemos das cidades]

1.
É o que trazemos 
(tanto) das cidades: o empedrado 
largo da pequena praça, 
um rosto, a rua dos bares
onde o lixo é recolhido de manhã,
o milagre de uma promessa ou um nome
anotados em guardanapos de papel
nas mesas das esplanadas.

2.
A senhora 
da agência de viagens, já 
em desespero, insistia 
no arquipélago das Quirimbas, 
nas pirâmides 
e um jantar 
no Cairo à luz das velas, numa pescaria
no Bósforo, num programa
de seis noites no deserto
com os tuaregues. Mas
eu queria apenas fumar de novo 
um cigarro na varanda do Palazzo Vecchio
depois de quatro longas horas
de comunicações
sobre a requalificação 
das periferias urbanas. E 
isso não tinha.

3.
Na avenida,
sob as araucárias, chovia
e não havia um táxi.

sexta-feira, abril 16, 2010

[uma nuvem de cinza]

1.
encostas os teus olhos de fogo
à matéria
combustível

e uma nuvem
de cinza
cobre a europa

2.
é uma evidência desconcertante:
os teus olhos
fecharem os aeroportos

quinta-feira, abril 15, 2010

[a glória e o reconhecimento]

sei que devo ter cuidado
isso mo diz o Amigo de modo singular
lembrando-me que a glória e o reconhecimento são vacas muito esquivas
que não posso dar-me ao luxo de escrever sobre o João Moutinho
um poeta como eu que até começava a ser considerado
em lisboa. e eu que sim
contrito a lamentar-me enquanto lia as
seis páginas dele com as apreciações ao resumo da assírio
de perder assim as noites a ver jogos de bola e
a beber cerveja
e a invectivar arbitragens provavelmente sem que
a razão inteira esteja do meu lado
a citar a despropósito o dias da cunha e
as conversas sobre o sistema
a não escrever uma linha que se diga benza-te deus
e possa acrescentar um módico de mérito
ao que um dia escrevi.

quarta-feira, abril 14, 2010

terça-feira, abril 13, 2010

[5 poemas do derby]

1: Isto começa ligeiramente a irritar-me

Não há ninguém
que dê ao Moutinho
um alfinete de dama
de modo a não estar a
braçadeira de capitão sempre
a descair-lhe
distraindo-se assim o moço de
ter que puxá-la
procurando pô-la
sistematicamente
no sítio?


2: A chuva

(Nota: poema escrito entre os 47 e os 65 minutos de jogo ou de como se vê o quanto é certo o popular ditado algarvio que diz não limpes o cu antes de cagar.)

Dei uma volta
pela Venda Nova um pouco
antes do jogo a ver (assim o suspeitava)
as ruas já desertas como
se houvesse uma revolução e
os militares decretassem
o recolher obrigatório. Também
eu (não tardou) haveria
de sentar-me em frente à TV
e aqui estou depois do intervalo
a rir-me de mim
e de todos mas
sobretudo dos que pagaram
bilhete e foram ao estádio da Luz
com bandeirinhas vermelhas
a apanhar chuva e
a acenar ao boneco.


3: Nós é mais pelos vistos o meio da tabela

O Benfica a
jogar assim estaria ao intervalo
a levar dois zero
do Desportivo 
de Chaves. Mas calhou-lhe
em sorte
o meu Sporting
a evoluir no relvado
um cibo
(como hei-de dizer isto?)
fracote.


4: Isto dos apitos

Ai
que ladrão!


5: Enfim

É claro
se formos a ver
eu sei
isto é
sobretudo
dor 
de cotovelo.

[não é não temer]

Não é não temer  
a morte (dizia)  
mas a incompreensão  
de que possa ser de outro modo  

o sentirmo-nos vivos  
que não seja  
a morte não fazer sentido.  
Vocação que me não foi  

dada: defender-me dessa  
abstracção que a poder tocar-me  
não haveria de tocar  

senão o que  
em mim já não era  
e não poderia nunca ter sido.

segunda-feira, abril 12, 2010

Poesia Ilimitada

Uma nota no Poesia & Lda., aqui, a propósito de escolhas, com um poema de António Cabral e tudo:

OS NOSSOS GOVERNOS

Numa coisa os nossos governos têm sido escrupulosamente
cristãos: mantêm a agricultura pobre para cumprir a profecia de
Cristo que diz: pobres sempre os tereis convosco.

domingo, abril 11, 2010

[em voo]

menor que o de todas as suas penas
é o peso 
do pássaro em voo

[10 de Abril em Moreanes]

Devem estar marcadas eleições 
intercalares em Mértola 
para a Junta de Freguesia: uma carrinha 
com altifalantes e doze 
militantes de prospectos 
lutavam (quase me pareceu 
em vão) na manhã de sábado 
contra a indiferença das casas 
e dos largos. A caminho de Moreanes 
era ainda o som da propaganda 
que teimava em erguer-se 
abrindo-se o vidro do carro 
a deixar entrar o odor misturado 
dos matos. Mas depois esperava-nos 
na casa de pasto do Pires 
a exposição anual 
de pintura: o Rico Sequeira 
a relembrar a importância decisiva 
de Weimar para a história 
da civilização, o Eurico 
a falar da estranha ética 
de Tóquio, a perdiz 
da Graça Morais pendurada 
numa parede de cal, o António 
Inverno a trazer o seu sorriso 
de criança às mesas 
da esplanada. O certo é 
que a lampreia e o cozido de grão e 
os vinhos do Alentejo 
ocuparam quase sempre o 
lugar que estaria reservado 
às artes e à reflexão 
sobre as imperfeições do mundo.