terça-feira, maio 17, 2011

[e depois o inverno]

Varas de lódão
pranchas nas cancelas das
hortas esculpidas a navalha
uma cruz desenhada com tinta vermelha
do lado de dentro
do portão das lojas
dos animais

e depois o inverno
o vento a dobrar os troncos dos
álamos brancos
a chuva no cimento dos pátios
o território imenso de um verão
que escreveu a direito nos fios
emaranhados
dos novelos
de ráfia

Era o tempo da infância
corríamos em direcção a
lado nenhum com lanternas acesas
a luz de mercúrio desenhada
no espelho de água
das represas

Habitaremos sempre esse
território devastado pelo granizo e
o lume incombustível

é aí que
ainda hoje nos dói quando
estamos doentes
ou acordamos num largo a meio da noite
e o mundo todo é só o
que vem desenhado
nos mapas
antigos
das províncias

[não era ainda a época dos naufrágios]

Não era ainda a época dos naufrágios
uma hélice triturava a
usura dos ofícios
os espíritos mais puros do meu tempo enriqueceram a
vender caixas de fósforos
um candidato mostrava que
não tinha nada na manga
fabricava permanganato
oferecia petróleo para a luz trémula dos candeeiros
das casas
nos intervalos
da campanha

Uma árvore
ou um rio

tão distante de nós ia ficando o que mais amávamos
lembro-me de conduzirmos os barcos
nos canais de rega
como se fossem as naus
dos descobrimentos

sabíamos o nome
delas todas
acreditávamos
ainda
no azul tingido da nuvem
do futuro

terça-feira, maio 10, 2011

[não devia chegar de noite]

Não devia chegar de noite a estes lugares
onde tudo o que um dia foi
parece emergir do fundo dos poços dos quintais
eco de outras vozes mais antigas
reverberação insidiosa dos segredos
palavras roídas pelo lado de
dentro das próprias frases

Fantasmas vagueiam em
silêncio contra o
fundo indefinido dos pinheiros bravos
o meu avô a colher as maçãs camoesas
e a guardá-las no cesto de vimes entrançadas da
presa das tílias
o táxi do senhor adriano a aproximar-se
vagarosamente da
bomba de gasolina
uma criança
que podia ser eu
a correr de olhos vendados nos
andaimes da obra dos bombeiros
voluntários

A sombra

mancha de óleo nas paredes das casas
cobrindo o alcatrão da estrada do rio

parece encerrar o tempo nas
suas cápsulas
de vidro

E não há um rumor
não há um único movimento
os ponteiros do relógio da torre parados a
meio da noite
entre as quatro
e as cinco horas
da tarde

quinta-feira, maio 05, 2011

[a luz de que fugíamos]

era em vez das constelações
escolhíamos o lugar da sombra
erguíamos uma pedra outra pedra
a água chegava-nos à cintura
nunca um muro juntou tantas coisas de um e outro lado
era como se fosse o contrário de uma fronteira
e fizéssemos contrabando de açúcar nas manhãs muito frias
de novembro
quando os guardas-fiscais ficam até tarde no posto
em redor do lume
e o amor acorda a meio da noite

era no tempo em que fugíamos da luz
porque não procurávamos outra coisa
a luz
a luz de que fugíamos ao seu encontro

quarta-feira, maio 04, 2011

[perder a memória]

perder a memória
como quem perde o barco que une as duas margens
dos rios
como quem procura no estrangeiro
a chave de casa
ou adormece na pedra
da lareira
com o rosto encostado
ao efémero tempo dos incêndios

chove de novo
desenhas nas partes em branco dos
mapas dos naufrágios
um território
que não existe

domingo, maio 01, 2011

[memória de tetuan]

jcb




[memória de chaouen]

jcb