sexta-feira, novembro 04, 2011

2.

Um homem, na mata pública, cortou vinte e seis pinheiros verdes. Estavam arrumados em toros de nove palmos pelo comprido no interior de uma lancha que não tardaria a atravessar o rio quando o homem foi surpreendido pelo Procurador do Concelho. Tanto era certa a consciência de que cometia um crime: procedera ao corte das árvores durante a noite; e era madrugada ainda quando, furtivo, acabava a tarefa.

A Leonardo começara sobretudo por surpreendê-lo a determinação do Procurador: quase a ira. Tinha dificuldade em compreender esse empenho contra um homem que, de acordo com o próprio denunciante, em sua defesa se limitara a afirmar «ser um pobre».

O Procurador acusou-o do roubo dos pinheiros e de posse de arma ilegal. E o escrivão quase sorriu de ver como as histórias se repetiam e como os acasos eram tão favoráveis às instâncias dos poderes: quis o acaso que naquele dia o Procurador se tivesse levantado invulgarmente cedo e topasse o homem pronto a largar-se da margem com os toros de nove palmos; quis o acaso, ainda, que quatro pessoas ali passassem nesse preciso momento e testemunhassem o denunciante a retirar ao denunciado, por cautela, uma faca que trazia no cós do calção e se confirmou ser flamenga, «de ponta aguda penetrante», com o seu cabo de madeira lavrada e um anel de metal amarelo; e quis o acaso, finalmente, que dois soldados artilheiros da guarnição da Praça ali estivessem em lugar de costume tão deserto e assim o levassem logo para o posto da guarda do Poço da Areia enquanto o Procurador rumara a denunciar o roubo «e mais perfídias» ao doutor juiz de fora ou a quem em juízo o representasse.

O homem, João Martins, de alcunha o Joanete, que cortava os pinheiros e se preparava para vendê-nos na outra margem por desafio de um espanhol que vivia de argúcias, não saberia defender-se por não compreender as razões de o que fazia ser um crime. Quer dizer: não desconhece que apenas é possível cortar pinheiros da mata por ordem do Procurador; mas não compreende porque se diz que os pinheiros são uma riqueza de todos quando sabe que nunca a ele essa riqueza aproveitou e tem por certo que nunca haverá de aproveitar-lhe.