terça-feira, junho 18, 2013

[Vermeer]

Fotografia de Manuel Dias.




1.
Vermeer tinha vinte e quatro anos
quando pintou a cortesã. As grandes dimensões
da tela, a preocupação de preenchê-la
toda até correr o universo todo
nos seus limites, o modo como a luz a invade
para trazer a jovem da penumbra
da casa, revelam-no ávido e crente
das alegrias materiais. Uma cumplicidade
insuspeita com o fogo traía a tranquilidade
frágil da composição, como se vermeer
não soubesse ainda conter a paixão e o tumulto
e do mais fundo de si irrompessem
com violência todos os nomes que mais
tarde quase não poisaram nos seus quadros.


2.
Das quatro paredes entre as quais viveu
a vida inteira, uma apenas, e de cal, despojada
já dos panos e tapetes que chegaram a fazer
parte das suas preocupações, escolheria
para as telas cada vez mais simples.
A erosão do mundo da família aos poucos foi
tomando mão dos planos grandes, e
vagarosamente correu as coisas uma
a uma até espalhar de sombra o sumptuoso espaço
dos primeiros tempos. A música haveria
então de persegui-lo com insistência.
Com as cartas e os mapas, ou seus
fragmentos, ela o acompanhava nos intervalos
cada vez mais vagos da evasão e do sonho.


3.
Mesmo quando, como na jovem rapariga
do turbante, vermeer deixa adivinhar a paz das
coisas que, incessantemente, o percorrem,
é ainda o apelo antigo do coração, um
anónimo fulgor sobressaltado, o que regressa
aos seus pincéis de muito longe. Nessas
margens raramente cabem a tranquilidade
e o repouso que aparentemente o definem.
No mais claro e leve olhar de rapariga
um movimento estranho nos transporta a escusos
e insuspeitos nomes e lugares. Para
repor o equilíbrio do mundo bastam agora
os objectos da casa, a janela só um pouco
aberta, o pequeno espaço do geógrafo.


4.
Só o tempo sabe diluir as cores assim, dos
vermelhos vivos ao azul e ao branco,
do fulgor do corpo às pérolas sem peso
do silêncio, do pulsar intenso da paixão à
paz da casa e ao vulgar comum
das coisas em redor. É um rumor antigo e
transparente o que aproxima os séculos da música
e do vinho ao movimento trémulo
das mãos agora exaustas procurando
sempre. Frágeis, as imagens se repartem
com o tempo e se transformam em nudez
completa, como se a idade média
do olhar, voraz e leve, adormecesse enfim na
vagarosa luz exígua destes quadros.


5.
Vermeer tinha vinte e quatro anos
quando pintou a cortesã. Insistentes vozes procuravam
nele ainda o ardor volúvel, a vigília, o
desencontro, a ilusão do amor. De certo
modo a sabedoria exige o logro, o frémito
efémero da paixão sem outro nome, a
devastação dos sinais de ruína e morte sobre
a ignorância crepuscular da idade.
O tempo, essa inefável clepsidra, dilui
o sobressalto em águas claras e resume os
hábitos do sangue nesta paz tranquila e sem
cuidado. Tão próximo da eternidade, só
é difícil, sempre, a manhã insidiante
e seu ruído contra os vidros e a parede branca.