domingo, outubro 26, 2014

notas do caderno de apontamentos do meu avô francisco

Os
que entram no mundo
pelo silêncio das florestas.
Os que vêem apenas
quando a luz
os cega.
Os que repetem
em voz alta
os nomes dos frutos.
Os que procuram até ao fim
a árvore
dos significados.
Os
que não
acreditam.
Os que não temem
o frio
do inverno.
Os
que não têm
contas a prazo.
Os que chegam sempre
tarde
às paragens dos autocarros.
Os que se esquecem
de riscar os dias
nos calendários.
Os que se recusam
a serem jovens
para sempre.
Os que guardam
as sementes
nas gavetas das cómodas.
Os
que não têm
pátria.
Os que deixam
entre as folhas dos livros
os retratos antigos.
Os
que enlouquecem
devagar.
Os
que têm
a obsessão dos mapas.
Os
que se rendem
à linguagem.
Os que crêem
no poder obscuro
dos acasos.
Os
que olham
as estrelas.
Os
que se
perdem.
Os
que não esperam nada
do mundo.
Os
que não têm nada
a perder.

quarta-feira, outubro 15, 2014

(poema antigo)

FADO

Gostava de escrever letras de fado.
Falar de um coração que não existe
se a dor o não tocar ou não for triste,
se o mundo não ruir, desmoronado

de tanta vil angústia e desalento.
Gostava desses temas nos meus versos:
de ter todos os dias mil pretextos
pra invocar um crime ou um lamento,

a insídia, um aneurisma, um anexim
antigo, um nó fatal na coronária,
traições, o luto, as penas do inferno.

Gostava tanto de escrever assim.
Detesto a minha obra literária.
Detesto ser poeta e ser moderno.

quinta-feira, outubro 09, 2014

os teus poemas

Tu dizes que é já tarde - e anoitece.
Tu falas em marés - e o mar pressente.
E o sol é nos teus braços que se aquece
em busca de outro núcleo iridescente.

Mas é no dia-a-dia, meu amor,
no pão, numa panela, num cabide,
na cama por fazer, no esquentador,
que tudo se confronta e se decide.

Por isso escrevo em prosa os teus poemas
e mais que a lua, a orbe, a imprecisa
Andrómeda, uma estrela, os grandes temas,
eu escolho o chão que pisas por divisa.

E temo, por incrível que pareça,
que a poesia mate ou enlouqueça.

quarta-feira, outubro 08, 2014

é pouco o que te der

É pouco o que te der. É sempre pouco.
Há sempre uma palavra, há sempre um gesto,
há sempre um nome em falta. Há sempre o resto.
Por isso o que te der é sempre pouco.

Às vezes imagino que o teu nome
é feito dos silêncios da floresta.
Às vezes adormeço: é o que me resta
nos dias em que o mar traz o teu nome.

Assim pudesse dar-te o que é do mundo:
navios, uma estrela, nebulosas
planetárias. Ou transformar em rosas
a luz das supernovas que há no mundo.

Assim pudesse dar-te a vida toda
e mais ainda. O resto que se foda.

terça-feira, outubro 07, 2014

em todas as mentiras

Em todas as mentiras que te disse
havia qualquer coisa de sublime:
eu queria ser melhor; e fui; e se
te menti até isso me redime.

Eu via-te chegar fechada em leque,
às vezes tão cansada e indiferente
ao lume e aos seus rumores; mas eu é que
limpava o pus e a ferida persistente

de ser o mundo assim tão arbitrário,
infame, vil, gravado em desencanto.
É certo que tirei do dicionário

(eram mentira) os versos que te fiz
e os nomes que te dava. E no entanto
só queria que pudesses ser feliz.

domingo, outubro 05, 2014

lamento do autor antigo

A métrica é um chão que já deu uvas.
A rima é outro chão. E agora é in
diferente o decassílabo ter vinte
ou doze ou quatro sílabas. Oh musas

de versos tão antigos: vade retro!
Eu quero é ser moderno em estilo livre
e ter a liberdade que não tive
ao respeitar a norma, a rima, o metro.

Calhava-me ter outras companhias.
Talvez frequentar mais livrarias
e ter noção dos crimes que cometo.

O certo é que merecia outro destaque:
autor que até se vende na FNAC,
só falta que me livre do soneto.

sábado, outubro 04, 2014

a poesia em 2014: uma antologia

Com o John Wayne
estávamos sempre à vontade.
Estávamos com o John Wayne
e atirámos a matar.

Os dois ladrões de cavalos
ficaram no chão
de terra batida
em frente ao saloon

com o sangue a escorrer-lhes
da boca. Tínhamos
oito anos

e no dia seguinte
não se falava de outra coisa
no recreio da escola.

sexta-feira, outubro 03, 2014

isto é apenas/ um filme

Ele dizia: isto é apenas
um filme; não tem o ruído de fundo
e esse grão minúsculo
e quase imperceptível

do cinema; uma espécie de sujidade
leve. E é isso também
que separa as cidades
e as aldeias: eu não era capaz

de respirar o ar
lavado dos campos; preciso
dos prédios altos

e desse ruído de fundo levemente sujo
das ruas das cidades
em hora de ponta.

o crítico literário vai de férias à província

Da varanda do quarto
viam-se
em vez das aliterações
o vale

e os pinheiros bravos
a subir
o monte. Acordava-se assim
a ver as coisas

concretas. Como se
afinal
além da literatura houvesse

mundo: casas;
pessoas; pássaros que
voavam mesmo.

quinta-feira, outubro 02, 2014

os do Eiró nos anos setenta

Os do Eiró
uma vez puxaram de navalhas
no recreio da escola
a meio de uma discussão

sobre a caderneta
dos cromos. E de repente
éramos todos grandes. Já ninguém
queria saber dos triângulos escalenos

ou dos complementos
directos. Tínhamos crescido tanto
nesses quinze minutos de recreio

que mal
começávamos
a caber em nós. Bem

podia a professora
falar-nos das províncias ultramarinas
ou apontar-nos no mapa
dos caminhos-de-ferro

a linha
do Corgo. Só pensávamos
no recreio
e em termos um dia

uma navalha de ponta-e-mola
com a lâmina
do comprimento

de uma mão de travessa
como as dos rapazes
do Eiró.

quarta-feira, outubro 01, 2014

nota a despropósito sobre um livro que ganhou um prémio

Não tinha caído a noite.
A noite não cai.
Isso é um modo de dizer.
Nós é que tínhamos caído

com estrondo. A noite apenas subiu
em direcção ao céu
a partir de nós.
O fenómeno está explicado

num livro de poemas
cujo título assim de repente
não recordo. O certo é
que ninguém se aleijou.